Guardachuvadelaura
maio 05, 2025
ENCHENTE I
Na última Parêntese, texto do jornalista Alício de Assunção, sobre a enchente que viveu no ano passado:
MANHÃ DE PÂNICO
Dia 30 de abril de 2024, estava com minha esposa em nossa
casa, no distrito de Tamanduá, em Marques de Souza, onde construímos uma vida
desde 1997.
Tamanduá era um lugarzinho pitoresco, fundado em 1888 por
colonizadores alemães e com cerca de 400 moradores.
Uma ou duas vezes por ano era até "normal" a
ocorrência de pequenas enchentes por conta de um arroio que corta a localidade,
mas nada que afetasse muito nossas vidas.
Por volta das 5h daquela manhã, uma chuva intensa fez com
que as águas do arroio invadissem parte de nossa casa, porém com pouca
intensidade. Logo baixaram e sabíamos que uma simples limpeza resolveria tudo.
Até então não imaginávamos o que ainda viria.
Por volta das 9h, as chuvas se intensificaram e o arroio
transbordou novamente e trechos dos morros, no outro lado da rua, começaram a
ceder. Nossa residência foi tomada pelas águas em poucos minutos. Conseguimos
escapar para a casa da minha sogra, bem próxima, e um pouco mais alta que a
nossa.
Porém, as águas continuaram a subir.
Logo, nosso filho
vindo de Lajeado para ajudar, mais a minha sogra com 76 anos, a mãe dela com 99
anos, e três vizinhos, nos vimos em cima do telhado para salvar nossas próprias
vidas. Depois de seis horas alguém conseguiu jogar uma corda e nos
resgatar. “Perrengue” tenso, por tentarmos sair ilesos enquanto presenciávamos
a destruição do nosso lar.
Hoje residimos em um apartamento em Lajeado, e da
"vida anterior" nem uma caneta ou roupa restou. Minha biblioteca, com
cerca de 600 livros, acervo de histórias da região, não existe mais.
De sequelas, às vezes um sentimento de uma mudança não
planejada, um desapego forçado. Mas quando vejo pessoas que ainda não
resolveram suas situações de moradia, sinto gratidão pela nossa família, pelos
amigos e desconhecidos que nos ajudaram, mas indignação por ser tudo tão lento
para muitas outras pessoas.
Minha reflexão sobre a resiliência e a força dos gaúchos que se sentem superiores a brasileiros de outras regiões, é a de que sempre bom lembrar que, quando a água bateu no pescoço, vimos que não somos melhores e nem piores que ninguém. Recebemos ajuda dos nossos irmãos do Nordeste, muitas vezes discriminados pelo Sul.
Espero que alguma lição se tenha aprendido de tudo
isso.
Alício de Assunção
Tamanduá, Marques de Souza.
ENCHENTE II
ENCHENTE 2024
Era maio, mês das mães e chovia.
Há poucos meses havia me mudado para Lajeado, e estava encantada com a cidade. Tudo parecia tão perfeito.
Eu moro em um apartamento no segundo andar e da janela posso contemplar, mesmo de longe, um parque verde com um lago bonito.
Naquele dia, ainda lembro bem, mais ou menos às 7h da manhã, ao
descer as escadas me deparei com pessoas olhando em direção ao parque e logo
imaginei ter acontecido um acidente ou algo assim.
Perguntei o que havia e alguém me respondeu que era mais uma enchente. Olhei e não vi nada que pudesse me assustar, e não entendi exatamente o que estava acontecendo. Subi e continuei fazendo o que era de costume.
Com o movimento diferente do habitual, desci outra vez, por
volta das 11h, e aí me deparei com a água na porta das casas vizinhas e já se
aproximando da entrada do meu prédio.
Não pensei em mais nada, só passou pela minha cabeça buscar
o que tinha de mais caro e sair dali.
Peguei a minha cachorrinha, a bolsa e um casaco. Não sabia para onde ir e nem quando iria voltar.
A ideia era fugir antes que a água
subisse ainda mais, com as pessoas dizendo que dessa vez entraria no prédio. Os
moradores do primeiro andar subiram seus móveis para o corredor do segundo.
Não lembro de ter visto algo tão impactante assim em toda
a minha vida. Realmente apavorante, com dias de medo, incertezas e desejo
de ver logo o sol brilhar e apagar aquele cenário.
Ainda hoje sinto pavor de um céu carregado de nuvens
escuras e dias de chuva intensa.
O inofensivo se tornou assustador e as águas, as
responsáveis por organizar minhas memórias.
Débora Merten
ENCHENTE III
REVOLTA
Estávamos em Garopaba, praia de nordestão e águas geladas. A previsão do tempo para o feriadão do Dia do Trabalho era de chuvas. Chegamos na segunda-feira, 29 de abril, com um chuvisco. A intenção era de voltar no domingo seguinte, bem cedinho.
- Mãe, aqui em Lajeado não para de chover e já deu enchente. Como tá aí?
A história toda é bem conhecida e logo imagens de horror começaram a lotar o meu celular.
Inacreditavelmente, no dia 1º de maio de 2024, as águas barrentas do Rio Taquari cobriram a BR-386. Nem a enchente de 1941, a pior delas, conseguiria o feito se a ponte lá existisse, mas eram tempos de barca entre Estrela-Lajeado. Aliás, uma bateu no pilar da ponte, comprometendo a estrutura e por isso, interditada. A antiga ponte de ferro sobre o rio Forqueta, que liga Arroio do Meio, foi levada. Depois, a outra na ERS-130. O caos se instalava.
Relatos surreais de pessoas presas nos telhados, de caícos amarrados nos postes e nas árvores, de corpos humanos e de animais que desciam pelas águas violentas do rio. Amigos íntimos viviam dias de pânico. As pessoas se refugiavam como podiam em ginásios e parentes. Dessa vez, uma enchente que atingia pobres e ricos. Até a casa do prefeito, num condomínio.
Assim que as águas baixaram, a situação apavorante foi parar na Matinal, no Jornal Nacional e na imprensa estrangeira. E nós angustiados, sem poder retornar da praia por quase um mês, porque não se conseguia sequer passar por Porto Alegre.
Relembrar é cutucar a raiva, o medo e a tristeza.
Raiva, dos governantes que continuam a incentivar a destruição ambiental.
Medo, quando vejo o céu se fechar e a previsão da meteorologia citar um cavaco e fortes precipitações de chuvas.
Tristeza, porque para muitos não foram apenas bens materiais, mas toda uma vida de trabalho árduo perdida, quando não pagaram com a própria existência.
Passado um ano, Lajeado e as cidades vizinhas não se recuperaram.