outubro 13, 2010

CARPINEJAR

“Envelheci…

tenho muita infância pela frente.”

DE VERDE, SÓ OS ANOS

Todas as paredes da minha infância foram engolidas pelo verticalismo dos prédios. Quase todas. Talvez fosse preciso esquecer a infância. Sim, talvez, para não suscitar inveja na criançada de hoje.

Caminhando pela Tiradentes escuto meu pai chegar na varanda do nosso chalé verde-escuro com venezianas vermelhas, obrigando o assoalho bem encerado ranger e denunciar sua presença a cada fim de tarde. Certa vez, um susto divertido: pipocou entre nossos pés com muito barulho os “peidinhos-de-adão” fazendo com que saíssemos em correria eufórica pelo pátio dos Fischer: laranjeiras, butiazeiro e jabuticabeira, passarinhada, um lagartão e um caminho secreto que dava no quintal da vizinhança. Existiu um tempo onde todas as crianças curtiam quintais, acreditem. Na frente desse chalé morava a família Schilling que tinha um Carlinhos que levava “guardachuvada” na cabeça sempre que implicava com meus seis anos. Agora se transformou numa rua sem graça, com prédios insípidos, mas que ainda devolvem os ecos de nossos risos inocentes.

Então nos mudamos para a Borges de Medeiros. Na casa azul-clara e janelas cinzas, um quartinho de lenha foi transformado em biblioteca e um porão maravilhoso em saleta de costura da minha mãe, onde no verão brincávamos com bonequinhas de papel e onde vi nascer uma ninhada de seis gatinhos. Havia um gramado com sombra de cinamomo onde me recuperei de uma hepatite. E havia parreira, um galpão, horta e um galinheiro. Ali montei muito circo e organizei vários “desfile de miss brasil” com direito a capa de cortina e coroa de papelão dourado. Foi nessa casa que vi o homem aterrissar na lua e meu avô jurar que tudo aquilo era mentira dos americanos. E onde observei com privilégio as melhores enchentes da minha vida e onde um dia acordei sem telhado por causa de um furacão. Ali presenciei o nascimento de meus irmãos gêmeos e onde, sentada e muda, desmanchada em suspiro, sem poder dançar, vi a primeira reunião-dançante na casa dos Teixeira. E daquele dia em diante senti que havia um mundo sublime muito além dos jogos de batalha naval, de banco imobiliário, de mico-preto, vareta ou do universo das bonecas da Estrela. Evito essa rua, evito olhar aquele prédio sem estilo e sem arvoredo que construíram bem em cima dos meus anos de confissões importantes: fui eu que libertei o canarinho.

Nesse inventário lúdico, impossível não lembrar de duas ruas que apaziguam minhas reminiscências. Quando chegamos em Lajeado, o Edifício Lincoln na Julio de Castilhos estava em fase de acabamento e minha mãe conta que nem porta havia. Muito brinquei por aqueles corredores de ladrilhos hidráulicos xadrezes. Graças a Zeus que o Lincoln ainda está de pé com todos os fantasmas preservados. Inclusive os do tempo do Brizola.

Na Saldanha Marinho, minha segunda casa continua, misteriosamente, de pé até hoje, porém transformada em consultório dentário. Fomos vizinhos da dona Zulmira que tinha um jardim fantástico e uma casa linda. Na calçada desta rua aprendi a andar de bicicleta, lomba abaixo, estofando a alma com os mistérios e o terror do necrotério bem próximo, limites vencidos corajosamente no dobrar da quadra. Foi onde montamos as melhores cabanas de lençol e onde num fim de tarde de outono ficamos todos se equilibrando nos galhos de uma pereira que havia no terreno baldio ao lado dos Zart. Tantas confabulações inspiradoras estendidas até a hora do céu coalhar de estrelas.

Agora cada leitor faça o seu inventário, antes que também nos roubem o direito de salvar do esquecimento datas como a de ontem. Parece mentira, mas fomos contemplados com uma infância onde se brincava na rua até em dia de chuva.

E as crianças de agora? O que lembrarão no futuro? Creche, grades, sábados e domingos em frente do computador?


* Crônica no A Hora de hoje

outubro 12, 2010

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

“Pouco importa

venha a velhice,

que é a velhice?

Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes,
as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.

Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.”

BOGOTA: LA PIRAGUA

Não sei o que seria de turistas incidentais se não fossem as milhagens aéreas. Es cierto! E’vero! Es ist wahr! E foi por onde começamos. E foi assim que descobri Bogotá nas alturas da Colômbia. Sim, para espanto de alguns amigos que preferem Buenos Aires a qualquer outra rota.

A brincadeira sem graça ficou por conta das Farc: “Vão fazer um curso rápido de guerrilha na selva?” Sem chance de resposta. As pessoas não gostam de falar, embora a tevê não deixe ninguém esquecer o drama do povo e dos oito mil pseudos revolucionários, hoje, lutando e matando pelo contrabando de cocaína.

Depois de sobrevoar uma imensidão verde-amarela e uma estrada líquida sem fim, desembarcamos em Bogotá.

http://www.colombia.travel

Não dá para acreditar: do aeroporto até o centro, ciclorutas. Ou, ciclovias. Lá, realmente, duas rodas têm prioridade.

Existe até mesmo o Dia da Bicicleta! Um taxista contou que uma vez por ano não circulam carros nem ônibus. Só dá elas. Achei fantástico. Invejável. Futurístico. Além do que a maioria das ciclovias é resguardada por alamedas com muito verde e com guardas de trânsito por toda parte, comandando a sinalização nas ruas com uma simples plaquinha de “Pare” e “Siga”. Sim, poucas sinaleiras. E isso que Bogotá é a quarta maior cidade da América Latina. Vi muitas obras de ampliação de ciclorutas. Aos domingos, diversas ruas são fechadas para incentivar a pratica do ciclismo. Então, a melhor maneira de conhecer a capital colombiana é mesmo, pedalando.

O barato em Bogotá é o transporte. E assim tomamos um táxi – muito barato – por dez mil pesos (R$ 10,00!) e depois de 8 ou 9 km chegamos ao centro. Largamos as tralhas e corremos para conhecer o Museu Nacional onde, antigamente, funcionava um presídio.

O que sabemos sobre aquela terra? Nada. Somos apenas turistas descompromissados e desorganizados, que chegamos até a Colômbia pelo surrealismo mágico do seu maior escritor...
Primeira parada: o antigo presídio, hoje, Museu Nacional com sua a bela e secular cerâmica indígena, pinturas históricas que conservam e divulgam a memória do país que parece viver tempos de restauração arquitetônica e, se assim posso dizer, de auto-estima.

Bogotá surpreende a cada momento, a cada descoberta, a cada ruazinha... Tem 58 museus, 45 teatros e mais de 30 bibliotecas, além de dezenas de galerias de arte. O tour poderia ser apenas cultural e essa parece ser a vocação da capital dos colombianos.

Além de quadros que registram a história, um conjunto de múmias indígenas bem conservadas.
Igrejas seculares, do início da colonização espanhola: são 28... Escolha uma ou duas e continue o seu passeio!

Entre tantos museus, escolhemos o impressionante Museu do Oro, com peças seculares, criadas pelos indígenas, de uma delicadeza que emociona. Ou diverte.
Museu Botero: obras doadas pela maior expressão artística nacional viva, Fernando Botero, o artista dos gordos, que hoje tem endereço fixo na Espanha. Não deixe de visitar a lojinha do Museu... uma perdição.

Depois dos museus, uma visita ao centro histórico da cidade: La Candelária. Século XVI. Atual centro de antiquários, bistrôs charmosos, centros culturais e muitas tiendas de recuerdos.

Na verdade Bogotá começou se chamando Santafé. Desde 1538. Conquistou sua independência em 1819 pelo sabre de Simon Bolívar. E no mesmo ano virou Bogotá. É história que não acaba mais. A começar por um Observatório Astronômico, de pé desde 1802!

Antes de descobrir um bar para matar a sede no final de tarde quente, descobrimos surpresos, cabines telefônicas informais em cada esquina: celular de aluguel.

Nos horizontes daquela cidade de sete milhões de habitantes, a 2.640 metros de altitude, à sombra dos Cerros Orientales, distingue-se um orgulho pela alma aguerrida de quem já lutou por mil dias.

Mas também uma alma poeta, artística e crítica.

Uma alma religiosa, que transformou uma mina de sal em catedral: Zipaquirá.

Enfim, Bogotá, arte e cultura popular, e um gostinho de quero mais até juntar as próximas milhagens.

"ANTES DO ANOITECER"

Javier Bardem vive um escritor cubano. Uma de suas melhores interpretações. Imperdível. Procure na sua locadora.