Guardachuvadelaura
agosto 14, 2009
ESCREVER PARA SOBREVIVER
O jornalista e escritor Lima Barreto, autor de Clara dos Anjos, Triste fim de Policarpo Quaresma, entre outros, foi também alcoólatra em um estágio avançado.
Além de sofrer preconceitos por ser humilde, filho de pai nascido escravo, Lima Barreto acabou internado algumas vezes no Hospício Nacional dos Alienados, onde em momentos de lucidez escreveu “Diário do Hospício”, designada pelos críticos como “literatura de urgência”, uma escrita para se reestruturar emocionalmente.
Luciana Hidalgo, autora de “Literatura de urgência - Lima Barreto no domínio da Loucura” escreveu que “a escrita parece atuar como ferramenta útil na recuperação de um “eu” partido, ou do pensamento cindido.”
Nas minhas atividades voluntárias percebo bem esse "eu" transtornado, humilhado, estigmatizado emergindo durante a Oficina de Criatividade Literária, através de versos e narrativas ficcionais. Ou não.
A esperança é que colaborem na autorecuperação dos internos. A escrita e a leitura como um canal para resgatar afetos e a auto-estima, na compreensão do eu de cada um.
agosto 10, 2009
ATO DE CONTRIÇÃO
Minha insônia é de enlouquecer. Na agonia dos travesseiros ouvi os sinos da igreja convocando os matutinos. Escorreguei daquelas cobertas esquizofrênicas e disfarçada de sonâmbula me vesti e fui para a missa.
Sim, até eu me surpreendi...
Mudou o padre, para espanto de todos madrugadores.
Veio de não sei onde, mas antes passou sete meses numa missão no Pará. Da bugrada para os burgueses... Ligeiro, deve mudar o discurso.
Na missa limito-me a sentar e levantar, sentar e levantar, sentar e levantar.
Desconfiam que a única oração que ainda sei é o pai –nosso. Rezo hipnoticamente.
Houve um tempo em que os bancos dessa igreja representavam o sexo e o estado civil dos fiéis:
- mulheres desacompanhadas e freiras na carreira de bancos bem à esquerda do altar.
- casadas com filhos, mas sem a presença do marido, na fileira central, à esquerda.
- casada acompanhada do marido centro, à direita.
- solteiros e desacompanhados, bem à direita.
Houve um tempo que eu sentava na ponta do banco para conferir os sapatos dos comungantes. Sapato rico, sapato pobre, sapato rico, sapato pobre... conga.
Houve um tempo que eu tinha medo de encostar os dentes na hóstia e me tornar uma pecadora mortal. A hóstia grudava no céu da boa e eu quase morria para desgrudá-la com a língua e disfarçar as aflições culposas.
Houve um tempo em que eu me confessava contando sempre os mesmos pecados: nome feio, briga com o irmão, ódio do pai, tesão pelo professor de educação física. Sim, desde pequenininha.
Agora eu sento onde quero, não olho para os lados, engulo a hóstia sem ajoelhar e penso que meus pecados não escandalizariam o mais reticente dos bispos.
Já fui musa de poeta...
cadinho
o que nos separa é nada
talvez nada
não fora as quatro mil palavras
com que te cobres quando me recebes;
não fora os quatro mil ouvidos
de que te munes
para interceptar as canções infra-sônicas
que me nascem do peito
para serem tuas.
agora o que te agrega a mim
é tanto:
o cheiro seminal da espécie.
J.C.Cardoso Goularte
4/set/80
agosto 09, 2009
PAULA MARQUES
“O meio urbano, ao gerar diferentes dinâmicas de relacionamento entre os indivíduos, tende a marginalizar os mais fracos, incapazes de manter o seu ritmo e a apagá-los, retirando-lhes qualquer visibilidade social. Envelhecer na cidade é arriscar-se a acabar os seus dias cada vez mais só…”
'A Solidão na Terceira Idade’
VEINHOS & VEINHAS...
Aos poucos meu bairro vai recebendo na vizinhança, asilos.
Tem um aqui pertinho que se diz Pousada da Felicidade. Quanta ironia.
Outro, cinco estrela, mensalidade de quase dois paus. Não adianta ter dinheiro, morre um a cada semana.
Fico pensando: quem pode ser feliz morando entre dois ou três ou mais em um quarto e recebendo visitas esparsas?
"Dêem o nome que quiserem" - como diz o excelente Seymour Hoffman para sua irmã, a atriz Laura Linney no filme a Família Savage - "essas casas não deixam de ser asilos." Onde os familiares colocam os seus velhos que não querem mais. Velhos com demência, com avc, com Alzeimer ou simplesmente velhos de gênio ruim. Desmilivri!
Quase todos garantem que lá suas mães estarão melhores. Sim, porque os pais, os homens morrem quase sempre antes. As viúvas duram tanto que acabam nos asilos.
Mas só aquelas que já distribuíram sua herança: dólares, fundos de ações, ouro.
Minha mãe sempre tão perspicaz e prevenida, avisou sua comadre: “Amiga, se não queres terminar num asilo não distribui as tuas jóias.”
Ela acatou o conselho e ainda mora num apartamento onde passa os dias se entupindo de bala de goma, assistindo Ana Maria Braga e dona do controle da tevê indo para a cama quando bem entende.
Minha avó recusou –se a morar com qualquer um dos três filhos e foi para uma “casa geriátrica”. Viveu até os 102 anos, com saúde. Apagou-se como a chama de uma vela...
Eu adoro bala de goma.