Guardachuvadelaura
março 02, 2015
SOCÓ
Assador de churrasco no Centro de Tradições da cidade,
aquele homem simples, melancólico, com suas culpas e sem maiores esperanças, um homem alto e magro, que vestiu bombacha e botas a vida toda, aquele homem de olhos mansos e escuros, nariz grosseiro e manchado,
hálito ruim que chegava através de trinta
cigarros por dia, de pescoço longo, voz grossa e rouca, de poucas palavras, daí
o apelido, Socó, era o meu vizinho. Era?
Foi assassinado nessa rua, que vai daqui até o cemitério. Foi abatido como uma ave no campo,
à sombra da madrugada de um domingo. Ninguém viu, mas
ouviu quem tem a soleira da porta junto à calçada. Três tiros e uma queda
silenciosa. Um lascou a parede lateral do Hotel. Dois acharam o peito de Socó.
Logo as venezianas abriram suas frestas, fachos suave dos lampadários se acenderam,
um grito de mulher rouquejou na porta aberta da oficina mecânica, os passos de chinelos apressados nas escadas dos chalés, também
o padre da canônica veio para fora. Alguém correu até a esquina da praça.
Alguém correu até a prefeitura e o guarda da noite ligou para o hospital. Demorou,
mas apareceu uma ambulância. Nem que
demorasse dois minutos, Socó não agonizou. Morreu com um espeto na mão,
trazendo para a mãe uma minga mal assada, agora suja de terra. Os vira-latas da
rua logo se encarregariam de sumir com a carne. Ninguém arredava, todos falavam
ao mesmo tempo até que chegou o fusca da patrulhinha. Minha mãe me abraçou e
disse vamos entrar. Ah, mãe... Entra! Amanhã tem que acordar cedo, tem aula.
O assunto rendeu dias na cidade. A imprensa provocou a
todos com suposições das mais sérias e outras tantas mais irônicas. Socó não
merecia. Ele sempre tão calado e discreto, tão diferente dos outros assadores
da cidade, agora na boca do povo.
Por fim, descobriu-se a culpada. Dona Floriana, mulher do
patrão do CTG, aquele que precisou honrar o casamento e matou Socó, quando ele voltava de um sarau de prendas, convocado para trabalhar nas
churrasqueiras.
Vingado, o patrão foi embora da cidade. E Floriana?
Virou macho. Porque essa cidade é terrível como a planície de Cistene.
SERIA A NATUREZA O MEU DEUS?
Deus existe? Existe? Deus? Ala, Maomé, Jeová? Krishna,
Xangô, Sidarta? Por favor, você existe seja lá que nome tem? Não. Como assim... Não? Se existisse não haveria criança estuprada. Não
nasceria criança vegetativa. Não haveria crueldade nem humilhação na velhice. Se um todo poderoso que escuta nossas orações nunca teria existido escravo
feito mercadoria. Não existiriam gananciosos
nem fascistas. Muito menos preconceitos e desigualdades. Se ele realmente existisse a África seria um continente
feliz. Não
existiriam doenças como esclerose lateral amiotrófica. E nunca teria existido um
Ivan IV, um al-Baghdad, um Pol Pot, um
Herodes. Não teria acontecido uma santa inquisição, uma bomba atômica sobre
Hiroshima, um jihad e se ... E a Esperança que nos sustenta? Frágil como uma chama de vela. A vida eterna é um
mito criado pelos homens para justificar as religiões e suas guerras. Então... o que realmente existe? Apenas a Natureza. Idolatrem a Natureza e todos nos salvaremos. Se um Deus, esse atende pelo nome Natureza. Necessidade de rezar?
Força nossa que estais na Natureza, santificada seja o
Vosso reino. Venha a nós a vossa divindade natural. Seja feita a Vossa vontade assim
na Terra como nas Aguas e no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje e basta. Perdoai as
nossas ofensas por ignorância, não nos deixeis cair em tentação,
mas livrai-nos do mal para que todos possamos sobreviver em Paz, amanhã e
sempre. Uma oração serve para mudar a natureza menor daquele que reza e não para divinizar o deus de cada um.
ENCERRANDO O ANO
Último dia do ano... Madrugadando às quatro horas da manhã...
Um pouco mais tarde, uma caminhada até a banca para comprar os jornais. De volta, com O Sul e o Correio do Povo embaixo do braço, a sorte de encontrar uma amiga que
pouco vi nesse ano que amolece de calor e chuva. Um abraço na artista plástica
Rute Krug. Um bem apertado, daqueles que transcende a culpa. Rute fez uma (ou
duas?) exposições da sua arte bacana e sensível neste ano. Não consegui ir. Em
Novo Hamburgo. Nos despedimos com outro abraço e o desejo de nos vermos mais a
partir de amanhã. Suspiro. Em casa me armo de lupa e vou trabalhar em uma das
caixas do arquivo do fotógrafo Sebaldo Hammes, que se foi em Janeiro. Antes uma passadinha por aqui. Para quem está lendo,
anote: faça por você, faça algo diferente por você em 2015. E olhe para o
Outro. A vida não tá facil? Olhe para o Outro. E não só para o seu umbigo, o
seu espelho, a sua cama... Até 2015!