Um
domingo entre Lacônia e alguns livros
Hoje
minha filha Clara veio almoçar comigo.
Após
matar a fome e a saudade, entre o café e a sobremesa, assunto vem, assunto vai,
mostrei pra ela um dos livros que ando lendo, “Engole esse choro”, da Laura
Peixoto, “uma das pessoas que faz aquelas lives comigo, lembra?”
Aquela
conversa de pai enchendo o saco para os filhos largarem o celular e lerem mais
livros, sabe como é?
Falei que
estava gostando porque apareciam cenas e personagens que me eram familiares,
numa época em que eu era ainda muito criança pra entender qualquer coisa. Era
como se alguns véus que cobriam aquela sociedade bastante fechada fossem
erguidos. Nem todos, é claro.
Eu me
referia especialmente à política e às consequências da ditadura de 1964,
assuntos sobre os quais era recomendável calar, na minha casa e na cidade
inteira. Pessoas que eram presas ou fugiam, denunciadas por vizinhos, com
razões não muito nobres. Mas também as novidades do mundo globalizado: o rock,
os cabeludos, as drogas...
Para
ilustrar o contexto, falei para a Clara sobre o lajeadense Flávio Tavares, a
quem fui apresentado em 2000 e que ao ouvir meu sobrenome logo perguntou pelo
meu pai, de quem tinha sido colega de aula. Mostrei a ela o seu tocante livro
“Memórias do Esquecimento”, e resumi como pude a biografia do autor, comentando
que até hoje eu nunca vira um gesto de reconhecimento a esse notável homem
público, escritor e jornalista por parte de sua cidade natal; e o que sua
família deve ter sofrido na época.
Lembrei até de contar à Clara (que é vegana)
um detalhe específico do livro: o autor deixou de comer carne e relacionava
essa decisão com a experiência de ter sido torturado.
Por
tabela, lembrei logo de outro personagem que veio de lá do interior das grotas
de Lajeado, que de colono virou marinheiro e depois guerrilheiro:
Avelino
Capitani, que foi homenageado em uma canção de Jorge Benjor e também narrou sua
história incrível em “A rebelião dos marinheiros”. Dele tampouco ouvimos falar
em Lacônia, ontem ou hoje.
A folhear
o livro do Flávio, Clara topou com seu sobrenome do meio, Hailliot, e contou
que tinha estudado numa cadeira da faculdade a vida de uma certa Malvina
Hailliot, de quem a sua professora era fã. Logo lembrei que tinha lido esse
mesmo sobrenome no livro da Laura, e saquei que ela queria se referir à família
do Flávio, mas como livro em papel não tem Ctrl+F já não achei em que passagens
o personagem aparecia.
A
Wikipedia veio em nosso socorro para ensinar que Malvina, uma professora ousada
e à frente do seu tempo, dita anarquista, era avó do Flávio e tinha morado logo
ali, em Cruzeiro do Sul. Ainda mostrei pra Clara umas fotos do famoso casarão
dessa cidade, onde devo tê-la levado algum dia, quando criança, e fizemos
planos de ir almoçar lá qualquer dia.
E
finalmente, voltando ao início dessa viagem aonde a memória e a imaginação nos
levaram, lembrei que a Laura mencionou que estava pesquisando sobre a vida
dessa mesma Malvina.
Na
mesma noite, terminei a leitura de “Engole esse choro” e já estou esperando o
próximo livro dela.