Para o filósofo, a água “tem um corpo, uma alma, uma voz. Mais que nenhum elemento talvez, a água é uma realidade poética completa.” (idem, p.17) “E delas faz parte um componente: o frescor. Um frescor relacionado à inocência, um frescor que corresponde a força do despertar.” (idem, p.34) Um despertar presenciado em Saliva pela sensualidade iminente da adolescente.
O curta não aborda um conceito-imagem de uma atitude inocente. Antes, um aprendizado empírico e delicado, sem associações românticas ou platônicas que poderia se esperar de um beijo há trinta anos atrás. Porque hoje o beijo não é mais uma questão de cara-metade, mas de ressonância visual, quando dois indivíduos se olham e pulsam na mesma sintonia, tocam-se os lábios, suga-se, descobre-se. Adoro isso...
Mas em Saliva o primeiro beijo é inspirado numa experiência técnica. Ou um beijo errante, beirando o erotismo e o cauteloso desconhecimento. Porque no filme, assim como na vida, importa para os adolescentes, na sua grande maioria, deixar de ser boca virgem, bv.
Assisti ao filme como uma narrativa limítrofe, entre a sensualidade e a inocência, transitando entre a imaginação poética e a realidade curiosa: o 1º beijo, a descoberta, o medo, o assombro.
Na cadeira de Cinema na Unisinos, lembro do professor explicando que as águas são metáforas significativas e muito particulares na imaginação do homem. Pois não fui encontrar respaldo nas reflexões de Bachelard? “... a água é também um tipo de destino, não mais apenas o vão destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser.” (idem, p.6) Em Saliva, a metamorfose acontece quando água significa a passagem de um estado infantil para um estado adolescente.
CONCLUINDO...
Percebo que Saliva é um filme totalmente autoral, quando Esmir Filho não se vale apenas da condição de diretor que foge do conceito mais comercial de cinema; não mantêm uma linearidade na sua narrativa, quando observa uma estrutura dramática não convencional, pelo menos, como entende Furtado (in Mourão, Labaki 2005, p.101):
“personagens que desconhecem a presença da câmera atuam e falam segundo o que se convencionou chamar de naturalismo; cenas que mostram só aquilo que serve ao desenvolvimento da fábula; cenários, figurinos e situações que simulam uma realidade possível; nada de dúvidas ou ações sem justificativas”.
Saliva dialoga com a memória afetiva por intermédio das líquidas metáforas poéticas e pela imaginação de Bachelard, jogando com as dúvidas, brincando com a imaginação da personagem. E da nossa também.
Mais confiante nessa reflexão, quando Vandromme (1955, p. 7) assegura que o cinema é um instrumento de memória, que conserva e reinventa os signos do passado. E que na idade da infância, nesse limite adolescente, “tudo é leve e entregue aos sonhos, aos pânicos da imaginação”. A infância, diz ele, “desmaterializa o mundo; suprime situações embaraçantes.”
Para autor, o essencial nesta idade é uma aptidão à fabulação. Já os adultos, dirá Paul Hazard, (in Vandromme, 1955, p.7) “não são livres; são prisioneiros deles mesmos. Quando brincam, ainda interesseiramente, brincam para descansar; e se jogam, interesseiramente jogam para esquecer, para não pensar nos tempos de adulto que lhes resta.”
Talvez, o cinema seja um jogo de sonhadores.
Joga o diretor, jogam os personagens e jogamos nós, os espectadores.
Interessadamente em apenas sonhar.
Procure por aí:
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MOURÃO, Maria Dora, LABAKI, Amir. O Cinema do Real. São Paulo: Cosac Naify, 2005.
TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro; LARROSA, Jorge; Lopes, José de Sousa Miguel Lopes. A Infância vai ao Cinema. Belo Horizonte: Autêntica. 2006.
VANDROMME, Pol. Le Cinéma et L’Enfance. Paris: Les Éditions du Cerf, 1955.