março 28, 2020

CRONICA


O jornalista Roberto Pompeu de Toledo conta no seu livro “A capital da solidão: Uma história de São Paulo das origens a 1900”, (2003) sobre a gripe espanhola.

É o mesmo artigo que assina na revista Veja desta semana, enviada, gentilmente, pelo jornalista Mazzarino, de Encantado.  Caso interesse:

“1918 foi no Brasil, e especialmente em São Paulo, o ano dos quatro “Gs”:
geada, gafanhotos, guerra e gripe.

A geada devastou as plantações de café.
Uma praga de gafanhotos completou a devastação.
A guerra na Europa inaugurou nesse ano a participação brasileira, ainda que modesta.

Para fechar a conta das desgraças, recebemos, por cortesia dos navios que chegavam a nossos portos, a visita da gripe, chamada “espanhola”, que corria o mundo.

O Rio de Janeiro, em meados de outubro, exibia aspecto desolador. 

Até as farmácias fechavam, por falta de funcionários sãos.

Nos cemitérios escasseavam coveiros, e caixões eram depositados no chão.

Em Santos, uma semana após o primeiro caso, os infectados eram 4 000.

Em São Paulo um hóspede carioca do Hotel d’Oeste, no Largo de São Bento, foi diagnosticado com a doença no dia 9 de outubro. Era o primeiro caso.

No dia 16 havia 29; no dia 23, 1 144; no dia 4 de novembro, 7 786.
São Paulo contava cerca de 550 000 habitantes; o Rio de Janeiro, 1 milhão; e o Brasil, 30 milhões.

Nos últimos dias de outubro São Paulo igualava-se ao Rio, no aspecto desolador. 


Boa parte do comércio fechara as portas, fosse por falta de fregueses, fosse de funcionários.

O jornal A Gazeta observava, no dia 23 de outubro, que o “elemento feminino” sumira das ruas: “Não existe há vários dias o footing que emprestava ao centro de nossa urbe, das 16 às 18 horas, um aspecto encantador, cheio de carinhas risonhas, deliciosas de graça e de beleza”.

A letalidade, de início, era baixa, a ponto de o jornal O Estado de S. Paulo, no dia 19, fazer pouco do problema:

“Basta, como resistência à moléstia, tomar, com rigor, as poucas e fáceis precauções aconselhadas pelos médicos da cidade. Quanto ao resto, não se preocupar e falar do morbo o menos possível, procurando manter em redor uma atmosfera de tranquilidade e confiança”.

As precauções eram evitar aglomerações, não fazer visitas, evitar esforço físico (acreditava-se que diminuíam a resistência à doença).


A primeira morte ocorreu em 21 de outubro.

A 2 de novembro eram 141 e nos dias seguintes aproximavam-se de 200.

O então precário sistema de saúde precisou de reforço. Montaram-se hospitais improvisados em colégios como o Sion, o São Luís e o Mackenzie, e em sedes de clubes como o Palestra Itália e o Paulistano.

O Corinthians, num humilde comunicado, afirmou que, “apesar de sua insignificante valia”, se sentia na obrigação de concorrer “para o alívio dos infelizes operários atacados pela pandemia”. Sendo assim, apesar de “pobre por sua natureza”, conclamou os sócios e os admiradores a uma vaquinha para socorro.

As baixas atingiam os detentores de postos-chave.
O delegado-geral Tirso Martins pegou a gripe e passou o cargo a seu segundo, que também pegou a gripe.

A dama da sociedade Antônia de Queirós, presidente da Cruz Vermelha paulista, também caiu gripada; sua substituta teve a mesma sorte, e a substituta da substituta. 

Club Atlético Paulistano em 1918: salões convertidos em enfermarias


Na redação de O Estado de S. Paulo, o diretor Júlio de Mesquita adoeceu e entregou o bastão aos filhos, o segundo Júlio e Francisco; estes o repassaram aos seguintes na cadeia de comando, e assim foi até que um simples amigo dos jornalistas, o jovem escritor, ainda inédito, Monteiro Lobato, assumiu, por conta própria, a chefia de uma redação deserta.

O escritor Paulo Duarte escreve, em suas memórias, que na Rua da Consolação passavam filas de caminhões levando cadáveres:

“Esta paisagem tornou-se rotina. Já não se prestava atenção naqueles montes de caixões de defunto, todos iguais, uns sobre os outros”.

Para atender à demanda, ampliaram-se os cemitérios da Consolação, do Araçá e do Brás, e abriu-se um novo, na Lapa. Luzes foram neles dispostas às pressas, para tornar possíveis enterros à noite.

Uma vala comum, aberta no cemitério do Brás, recebeu 337 corpos, sem caixões. 


Na maioria vieram do hospital improvisado na Hospedaria dos Imigrantes, onde foi internada grande parte da população pobre.
Nos bairros populares, mais que a doença, temia-se a Hospedaria dos Imigrantes.

Espalhava-­se que ali se aplicava o “chá da meia-­noite”, para apressar a ida dos pacientes desta para a melhor.

A 19 de dezembro declarou-se encerrada a epidemia, depois de 66 dias.

Na conta oficial, 116 777 pessoas foram infectadas na cidade e 5 331 morreram.

Cálculos extraoficiais fazem o número de infectados avançar a até 350 000, o que corresponderia a dois terços dos habitantes.

março 26, 2020

MALCOM X

“Você não deveria ser tão cego 
com o patriotismo
a ponto não conseguir encarar a realidade.

Errado é errado,
não importa quem o faz ou diz.”

DIÁRIO DE UMA CONFINADA




Desde o fim do dia 18 de março, quando voltamos de Garopaba, estamos trancamos em casa. No dia anterior fiz minha última trilha com as netas, na praia.  Nos despedimos sem saber se quando iriamos nos ver de novo. Sem abraço e sem beijo. À noite iniciei esse diário, me valendo de uma caneta e  agenda: não posso contar com a minha memória para o futuro. Nesse mesmo dia, meu filho fechou as suas lojas de vestuário. E eu senti orgulho. Só quase uma semana depois, outros empresários fizeram o mesmo e porque o governo mandou. Meus filhos se trancaram com seus filhos. Adriana foi dispensada da faxina, com garantia de seu salário no fim do mês.

No dia 19, a vigilância sanitária foi no prédio da minha mãe, colher material para teste. Entramos em pânico.  A desesperança é como um paquiderme: pesada e sem saber a extensão do corpo como um todo.


Dia 20, ao meio-dia, meu irmão resgatou a mãe daquele prédio-bomba onde três acabaram confirmados com vírus. Eles passaram aqui. Foi a ultima vez que a vi olho no olho. Trouxe um vidrinho de água benta. Acho que vou beber...  Inicio um tratamento com antibiótico para garganta, que vem baleada desde a praia. Faxinas, faxinas e faxinas em toda casa: desinfetando tudo, até o nariz com gel e sabão.  Como um tsunami, a pandemia nos arrasta e revela nosso lado mais covarde e angustiante.



Dia 21, sábado, Anna Clara fez 11 anos. Nunca mais vai esquecer esses dias de terror? O Japão, que passou por explosão nuclear, guerras, furacões e tsunamis reais, é o que mostra mais presteza no combate à pandemia. E ainda pensa na possibilidade dos Jogos Olímpicos. São disciplinados, mas também kamikazes.  Aqui, o 1º caso é confirmado na cidade. Uma das 60 pessoas que viajaram de navio...

Dia 22, nosso primeiro domingo recluso, sem cheiro de churrasco. Míseros filés de frango. A cozinha não é meu forte. Um silêncio impressionante no bairro, sequer o som dos caminhões da BR 386 chega até aqui. Da janela, acompanho o voo de uma borboleta polinizando as flores do jardim. É tempo de seca. Faz tempo que não chove no estado. Sairemos vivos dessa? Ligo para amigos e familiares. O  whatsApp é a principal ferramenta de contato, fofocas, fakes e poesia. Minha garganta não cede – apreensão.  Revejo o cineteen "O feitiço de Aquila", de 1985, com Matthew Broderick adolescente e a bela Michelle Pfeiffer. O tempo faz isto: desconstrói o passado. Quando deito a cabeça no travesseiro, mesmo depois de muito cansada, a insônia não dá trégua e lá vem mais um zolpidem embaixo da língua.




Dia 23, minha amiga das mais antigas e comadre, Tina, faz aniversario. Nada de reencontro regado à whisky e champanhe.  Vou de goela seca para o meu quintal arrancar inço e mexer na terra.  À tardinha boto o vinil  Muitos Carnavais, do Caetano e como uma serpentina viva pulo pela  sala, ignorando a falta de confetes. Saio suada. É tempo de sofá e assisti Butch Cassidy & the Sundance kid, no Telecine. A trilha sonora para a cena de Paul Newman na bicicleta me emociona. Minha garganta não cura: medo entalado?


Dia 24, hoje daria uma oficina de literatura no Arte na Univates... Faxino, faxino, faxino. Alguém fala em vírus democrático e tenho um surto de raiva. Como assim, imbecil? As industrias alimentícias estão trabalhando e os filhos dos funcionários estão brincando na Slan, aos cuidados das professoras. E tu vem  falar em vírus democrático? Vai tefudê.  A coisa mais emocionante que realizo nesta terça-feira é lavar 25 sacolas plásticas que vieram dos mercados... Dois casos confirmados na cidade. Os do prédio da minha mãe. Saindo viva dessa serei uma fantasma viva? Assisto a dois capítulos do documentário “Quem matou Malcom X”?

Dia 25, “O tempo parado na nossa frente...” canta Elton John: happy birthday, sir! 73 anos. Assisto ao seu doc no Canal Bis. Na segunda vez que ele veio a Porto Alegre, fomos. Marcou muita minha adolescência e não sei qual das suas canções gosto mais. A gente cantava o que entendia inventando um  inglês ordinário e chorava, sem saber a tradução das letras. Faço vacina da gripe. Ninguém no posto. E o cara que aplica tá sem luva, putz... Perco meus óculos. Vejo Lívia de bici com o pai. A lavanderia inunda: esqueci os saquinhos do super dentro do tanque, onde escoa a água da máquina de lavar... Enchente até na cozinha. A garganta não melhorou e tomei a ultima dose do antibiótico. Tô surtada. Mais dois capítulos do Malcom X.


Dia 26, um desgoverno, um psicopata que deveria renunciar agora. Um Ministro da Saúde que em 2016, como deputado federal pelo DEM, aprovou o congelamento durante 20 anos de investimentos  na saúde e educação. Admirado por muitos, mas agora mudou sua postura para se alinhar ao pronunciamento assassino do capo da nação. Mandetta foi indicação do governador goiano Caiado, que rompeu ontem com o bolsobosta. 160 possíveis infectados na minha cidade. 5 confirmados. Na reportagem sobre a pandemia em Nova Iorque, falam que o corona é pior que a derrubada das torres gêmeas... Mas  aqui, o psicopata acha que é apenas uma gripezinha. 77 mortes no Brasil. Faço yoga na sala. À noite, depois do cine-sofá, leio "A elegância do ouriço", de Muriel Barbery, presente de niver da minha mais recente amiga, Ingrid.






março 22, 2020

EDUARDO GALEANO


“Eu não acredito em caridade, 
eu acredito em solidariedade.

Caridade é tão vertical: 
vai de cima pra baixo.

Solidariedade é horizontal: 
respeita a outra pessoa e aprende com o outro.

A maioria de nós tem muito o que aprender 
com as outras pessoas.”

GERBASE, MANDANDO SEMPRE BEM