DIÁRIO DE UMA CONFINADA
Desde o fim do dia 18 de março, quando voltamos de Garopaba,
estamos trancamos em casa. No dia anterior fiz minha última trilha com as
netas, na praia. Nos despedimos sem
saber se quando iriamos nos ver de novo. Sem abraço e sem beijo. À noite
iniciei esse diário, me valendo de uma caneta e
agenda: não posso contar com a minha memória para o futuro. Nesse mesmo
dia, meu filho fechou as suas lojas de vestuário. E eu senti orgulho. Só quase
uma semana depois, outros empresários fizeram o mesmo e porque o governo
mandou. Meus filhos se trancaram com seus filhos. Adriana foi dispensada da
faxina, com garantia de seu salário no fim do mês.
No dia 19, a vigilância sanitária foi no prédio da minha
mãe, colher material para teste. Entramos em pânico. A desesperança é como um paquiderme: pesada e sem saber a extensão do corpo como um todo.
Dia 20, ao meio-dia, meu irmão resgatou a mãe daquele prédio-bomba
onde três acabaram confirmados com vírus. Eles passaram aqui. Foi a ultima vez que a vi olho no olho. Trouxe um vidrinho de água benta. Acho que vou beber... Inicio um
tratamento com antibiótico para garganta, que vem baleada desde a praia. Faxinas, faxinas e faxinas em toda casa: desinfetando tudo,
até o nariz com gel e sabão. Como um
tsunami, a pandemia nos arrasta e revela nosso lado mais covarde e angustiante.
Dia 21, sábado, Anna Clara fez 11 anos. Nunca mais vai esquecer esses dias de terror? O Japão, que passou por explosão nuclear, guerras,
furacões e tsunamis reais, é o que mostra mais presteza no combate à pandemia.
E ainda pensa na possibilidade dos Jogos Olímpicos. São disciplinados, mas
também kamikazes. Aqui, o 1º caso é confirmado na cidade. Uma das 60 pessoas que
viajaram de navio...
Dia 22, nosso primeiro domingo recluso, sem cheiro de
churrasco. Míseros filés de frango. A cozinha não é meu forte. Um silêncio
impressionante no bairro, sequer o som dos caminhões da BR 386 chega até aqui.
Da janela, acompanho o voo de uma borboleta polinizando as flores do jardim. É tempo
de seca. Faz tempo que não chove no estado. Sairemos vivos dessa? Ligo para amigos
e familiares. O whatsApp é a principal
ferramenta de contato, fofocas, fakes e poesia. Minha garganta não cede –
apreensão. Revejo o cineteen "O feitiço de Aquila", de 1985, com Matthew
Broderick adolescente e a bela Michelle Pfeiffer. O tempo faz isto: desconstrói o passado. Quando deito a cabeça no travesseiro, mesmo depois de
muito cansada, a insônia não dá trégua e lá vem mais um zolpidem embaixo da
língua.
Dia 23, minha amiga das mais antigas e comadre, Tina, faz aniversario. Nada de reencontro regado à whisky e champanhe. Vou de goela seca para o meu quintal arrancar inço e mexer na terra.
À tardinha boto o vinil Muitos Carnavais, do Caetano e como uma serpentina
viva pulo pela sala, ignorando a falta de confetes. Saio suada. É tempo de sofá e assisti Butch Cassidy & the Sundance kid, no Telecine. A trilha sonora para a cena de Paul Newman na bicicleta me emociona. Minha garganta não cura: medo entalado?
Dia 24, hoje daria uma oficina de literatura no Arte na
Univates... Faxino, faxino, faxino. Alguém fala em vírus democrático e tenho um surto de raiva. Como
assim, imbecil? As industrias alimentícias estão trabalhando e os filhos dos
funcionários estão brincando na Slan, aos cuidados das professoras. E tu vem falar em vírus democrático? Vai tefudê. A coisa mais emocionante que realizo nesta terça-feira é lavar 25
sacolas plásticas que vieram dos mercados... Dois casos
confirmados na cidade. Os do prédio da minha mãe. Saindo viva dessa serei uma fantasma
viva? Assisto a dois capítulos do documentário “Quem matou Malcom X”?
Dia 25, “O tempo parado na nossa frente...” canta Elton John:
happy birthday, sir! 73 anos. Assisto ao seu doc no Canal Bis. Na segunda vez que ele veio a Porto Alegre, fomos. Marcou muita minha adolescência e não sei qual das
suas canções gosto mais. A gente cantava o que entendia inventando um inglês ordinário e chorava, sem saber a tradução das
letras. Faço vacina da gripe. Ninguém no posto. E o cara que aplica tá sem
luva, putz... Perco meus óculos. Vejo Lívia de bici com o pai. A lavanderia
inunda: esqueci os saquinhos do super dentro do tanque, onde escoa a água da
máquina de lavar... Enchente até na cozinha. A garganta não melhorou e tomei a
ultima dose do antibiótico. Tô surtada. Mais dois capítulos do Malcom X.
Dia 26, um desgoverno, um psicopata que deveria renunciar
agora. Um Ministro da Saúde que em 2016, como deputado federal pelo DEM,
aprovou o congelamento durante 20 anos de investimentos na saúde e educação. Admirado por muitos, mas agora mudou sua postura para se alinhar ao pronunciamento assassino do capo da
nação. Mandetta foi indicação do governador goiano Caiado, que rompeu ontem com o bolsobosta.
160 possíveis infectados na minha cidade. 5 confirmados. Na reportagem sobre a pandemia em Nova Iorque,
falam que o corona é pior que a derrubada das torres gêmeas... Mas aqui, o psicopata acha que é apenas uma
gripezinha. 77 mortes no Brasil. Faço yoga na sala. À noite, depois do cine-sofá, leio "A elegância do ouriço", de Muriel Barbery, presente de niver da minha mais recente amiga, Ingrid.
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