março 26, 2020

DIÁRIO DE UMA CONFINADA




Desde o fim do dia 18 de março, quando voltamos de Garopaba, estamos trancamos em casa. No dia anterior fiz minha última trilha com as netas, na praia.  Nos despedimos sem saber se quando iriamos nos ver de novo. Sem abraço e sem beijo. À noite iniciei esse diário, me valendo de uma caneta e  agenda: não posso contar com a minha memória para o futuro. Nesse mesmo dia, meu filho fechou as suas lojas de vestuário. E eu senti orgulho. Só quase uma semana depois, outros empresários fizeram o mesmo e porque o governo mandou. Meus filhos se trancaram com seus filhos. Adriana foi dispensada da faxina, com garantia de seu salário no fim do mês.

No dia 19, a vigilância sanitária foi no prédio da minha mãe, colher material para teste. Entramos em pânico.  A desesperança é como um paquiderme: pesada e sem saber a extensão do corpo como um todo.


Dia 20, ao meio-dia, meu irmão resgatou a mãe daquele prédio-bomba onde três acabaram confirmados com vírus. Eles passaram aqui. Foi a ultima vez que a vi olho no olho. Trouxe um vidrinho de água benta. Acho que vou beber...  Inicio um tratamento com antibiótico para garganta, que vem baleada desde a praia. Faxinas, faxinas e faxinas em toda casa: desinfetando tudo, até o nariz com gel e sabão.  Como um tsunami, a pandemia nos arrasta e revela nosso lado mais covarde e angustiante.



Dia 21, sábado, Anna Clara fez 11 anos. Nunca mais vai esquecer esses dias de terror? O Japão, que passou por explosão nuclear, guerras, furacões e tsunamis reais, é o que mostra mais presteza no combate à pandemia. E ainda pensa na possibilidade dos Jogos Olímpicos. São disciplinados, mas também kamikazes.  Aqui, o 1º caso é confirmado na cidade. Uma das 60 pessoas que viajaram de navio...

Dia 22, nosso primeiro domingo recluso, sem cheiro de churrasco. Míseros filés de frango. A cozinha não é meu forte. Um silêncio impressionante no bairro, sequer o som dos caminhões da BR 386 chega até aqui. Da janela, acompanho o voo de uma borboleta polinizando as flores do jardim. É tempo de seca. Faz tempo que não chove no estado. Sairemos vivos dessa? Ligo para amigos e familiares. O  whatsApp é a principal ferramenta de contato, fofocas, fakes e poesia. Minha garganta não cede – apreensão.  Revejo o cineteen "O feitiço de Aquila", de 1985, com Matthew Broderick adolescente e a bela Michelle Pfeiffer. O tempo faz isto: desconstrói o passado. Quando deito a cabeça no travesseiro, mesmo depois de muito cansada, a insônia não dá trégua e lá vem mais um zolpidem embaixo da língua.




Dia 23, minha amiga das mais antigas e comadre, Tina, faz aniversario. Nada de reencontro regado à whisky e champanhe.  Vou de goela seca para o meu quintal arrancar inço e mexer na terra.  À tardinha boto o vinil  Muitos Carnavais, do Caetano e como uma serpentina viva pulo pela  sala, ignorando a falta de confetes. Saio suada. É tempo de sofá e assisti Butch Cassidy & the Sundance kid, no Telecine. A trilha sonora para a cena de Paul Newman na bicicleta me emociona. Minha garganta não cura: medo entalado?


Dia 24, hoje daria uma oficina de literatura no Arte na Univates... Faxino, faxino, faxino. Alguém fala em vírus democrático e tenho um surto de raiva. Como assim, imbecil? As industrias alimentícias estão trabalhando e os filhos dos funcionários estão brincando na Slan, aos cuidados das professoras. E tu vem  falar em vírus democrático? Vai tefudê.  A coisa mais emocionante que realizo nesta terça-feira é lavar 25 sacolas plásticas que vieram dos mercados... Dois casos confirmados na cidade. Os do prédio da minha mãe. Saindo viva dessa serei uma fantasma viva? Assisto a dois capítulos do documentário “Quem matou Malcom X”?

Dia 25, “O tempo parado na nossa frente...” canta Elton John: happy birthday, sir! 73 anos. Assisto ao seu doc no Canal Bis. Na segunda vez que ele veio a Porto Alegre, fomos. Marcou muita minha adolescência e não sei qual das suas canções gosto mais. A gente cantava o que entendia inventando um  inglês ordinário e chorava, sem saber a tradução das letras. Faço vacina da gripe. Ninguém no posto. E o cara que aplica tá sem luva, putz... Perco meus óculos. Vejo Lívia de bici com o pai. A lavanderia inunda: esqueci os saquinhos do super dentro do tanque, onde escoa a água da máquina de lavar... Enchente até na cozinha. A garganta não melhorou e tomei a ultima dose do antibiótico. Tô surtada. Mais dois capítulos do Malcom X.


Dia 26, um desgoverno, um psicopata que deveria renunciar agora. Um Ministro da Saúde que em 2016, como deputado federal pelo DEM, aprovou o congelamento durante 20 anos de investimentos  na saúde e educação. Admirado por muitos, mas agora mudou sua postura para se alinhar ao pronunciamento assassino do capo da nação. Mandetta foi indicação do governador goiano Caiado, que rompeu ontem com o bolsobosta. 160 possíveis infectados na minha cidade. 5 confirmados. Na reportagem sobre a pandemia em Nova Iorque, falam que o corona é pior que a derrubada das torres gêmeas... Mas  aqui, o psicopata acha que é apenas uma gripezinha. 77 mortes no Brasil. Faço yoga na sala. À noite, depois do cine-sofá, leio "A elegância do ouriço", de Muriel Barbery, presente de niver da minha mais recente amiga, Ingrid.






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