DE VERDE, SÓ OS ANOS
Todas as paredes da minha infância foram engolidas pelo verticalismo dos prédios. Quase todas. Talvez fosse preciso esquecer a infância. Sim, talvez, para não suscitar inveja na criançada de hoje.
Caminhando pela Tiradentes escuto meu pai chegar na varanda do nosso chalé verde-escuro com venezianas vermelhas, obrigando o assoalho bem encerado ranger e denunciar sua presença a cada fim de tarde. Certa vez, um susto divertido: pipocou entre nossos pés com muito barulho os “peidinhos-de-adão” fazendo com que saíssemos em correria eufórica pelo pátio dos Fischer: laranjeiras, butiazeiro e jabuticabeira, passarinhada, um lagartão e um caminho secreto que dava no quintal da vizinhança. Existiu um tempo onde todas as crianças curtiam quintais, acreditem. Na frente desse chalé morava a família Schilling que tinha um Carlinhos que levava “guardachuvada” na cabeça sempre que implicava com meus seis anos. Agora se transformou numa rua sem graça, com prédios insípidos, mas que ainda devolvem os ecos de nossos risos inocentes.
Então nos mudamos para a Borges de Medeiros. Na casa azul-clara e janelas cinzas, um quartinho de lenha foi transformado em biblioteca e um porão maravilhoso em saleta de costura da minha mãe, onde no verão brincávamos com bonequinhas de papel e onde vi nascer uma ninhada de seis gatinhos. Havia um gramado com sombra de cinamomo onde me recuperei de uma hepatite. E havia parreira, um galpão, horta e um galinheiro. Ali montei muito circo e organizei vários “desfile de miss brasil” com direito a capa de cortina e coroa de papelão dourado. Foi nessa casa que vi o homem aterrissar na lua e meu avô jurar que tudo aquilo era mentira dos americanos. E onde observei com privilégio as melhores enchentes da minha vida e onde um dia acordei sem telhado por causa de um furacão. Ali presenciei o nascimento de meus irmãos gêmeos e onde, sentada e muda, desmanchada em suspiro, sem poder dançar, vi a primeira reunião-dançante na casa dos Teixeira. E daquele dia em diante senti que havia um mundo sublime muito além dos jogos de batalha naval, de banco imobiliário, de mico-preto, vareta ou do universo das bonecas da Estrela. Evito essa rua, evito olhar aquele prédio sem estilo e sem arvoredo que construíram bem em cima dos meus anos de confissões importantes: fui eu que libertei o canarinho.
Nesse inventário lúdico, impossível não lembrar de duas ruas que apaziguam minhas reminiscências. Quando chegamos em Lajeado, o Edifício Lincoln na Julio de Castilhos estava em fase de acabamento e minha mãe conta que nem porta havia. Muito brinquei por aqueles corredores de ladrilhos hidráulicos xadrezes. Graças a Zeus que o Lincoln ainda está de pé com todos os fantasmas preservados. Inclusive os do tempo do Brizola.
Na Saldanha Marinho, minha segunda casa continua, misteriosamente, de pé até hoje, porém transformada em consultório dentário. Fomos vizinhos da dona Zulmira que tinha um jardim fantástico e uma casa linda. Na calçada desta rua aprendi a andar de bicicleta, lomba abaixo, estofando a alma com os mistérios e o terror do necrotério bem próximo, limites vencidos corajosamente no dobrar da quadra. Foi onde montamos as melhores cabanas de lençol e onde num fim de tarde de outono ficamos todos se equilibrando nos galhos de uma pereira que havia no terreno baldio ao lado dos Zart. Tantas confabulações inspiradoras estendidas até a hora do céu coalhar de estrelas.
E as crianças de agora? O que lembrarão no futuro? Creche, grades, sábados e domingos em frente do computador?
* Crônica no A Hora de hoje
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