fevereiro 27, 2010

PAUL AUSTER


"A realidade está repleta de acasos.
É o que nos faz sermos quem somos."

CONSULTÓRIO DO LAR ...

Atenção comadres sem afinidades com a cozinha, um território perigoso onde a gente se molha se corta e se queima. Essa semana o balde transbordou e nada melhor do que um ouvido feminino para compreender as agruras do lar, os piriquipaques femininos.
No domingo inventei de ferver em banho-maria um pote de mel dentro de uma singela e inofensiva leiteirinha. Deixei em fogo baixo e corri para o computador para escrever a crônica da semana, ler os emails, atualizar meu blog.


Lá pelas tantas senti o cheiro de algo adocicado queimando. Ahã... O mel afinou e transbordou sobre a leiteira melecando o fogão e o piso da cozinha, enquanto chamas preto-douradas espalhavam uma bela fumaceira pelo ar.
Nem me estressei, gurias, juro.
Desliguei a chama e voltei para as neuras da blogosfera.
Não demorou dez minutos, duas abelhas invadiram zumbindo a caverna cibernética onde trabalho. Entraram sem bater e logo meus dois únicos dentritos receptores se conectaram assustados.
Corri para a sala e quando abri a porta do corredor presenciei centenas de abelhas histéricas zonzeando por todo espaço caseiro atrás do cheiro adocicado que elas conhecem tão bem e que vivemos surrupiando.
Na cozinha vi uma mancha escura ruidosa bem grudada na leiteira e no pote de mel. No ar, um enxame guloso zunia no ar em círculos esperando a sua vez de avançar no meleiro.


Logo me vi agonizando no chão, inchada de ferroadas e sem ninguém para me socorrer. O sinistro da imagem me deu forças para fugir: branca e borrada. Antes passei a mão num spray de flit e quando cheguei no escritório, perdoem, assassinei as duas abelhinhas perdidas.
Para quem ligar? Bombeiros? Nem morta que pagaria esse mico. Meio Ambiente? Só querem saber dos mosquitos da dengue.
Para quem você ligaria?
Por sim, por não, voltei enrolada num lençol branco para o aromático campo de batalha. Consegui, com calma, retirar a leiteira melada para fora da cozinha. Mas as abelhas não entenderam a estratégia e continuaram se digladiando dentro da casa, para meu desespero.
Lembrei do vizinho que vende mel e liguei por socorro: ele curtia dias nublados na praia. Atendeu a moça que trabalha na casa e pediu calma, para não me desesperar que ela vinha ajudar. Assim que chegou, assumiu o fogão sujo e coalhado de abelhas, cobriu as janelas sem venezianas com toalhas ensinando que é preciso deixar tudo escurinho e fechado, apenas uma fresta de luz para guiar as abelhas para o ar livre.
E foi o que aconteceu: partiram.
Em meia hora a sala ficou vazia, sem graça, silenciosa, limpa e o fogão tostado.

Há males que vem para bem: se nada disso tivesse acontecido eu não teria o que escrever essa semana porque nem eu aguento meu azedume e desânimo nesse fevereiro sem praia.
E já que estamos falando de cozinha... Na segunda-feira não só queimei o feijão, como derrubei a panela no chão. Na terça consegui queimar o braço quando inventei de assar uma costelinha de porco no forno. E no último sábado, lavando a louça, cortei o dedo num copo lascado.
Digam comadres: por que não pagar seis reais para almoçar no Kilo?
Poupa-se água, luz, detergente, gás, fora o desperdício de comida.
Sim, poupa-se lágrimas.

* Minha crônica publicada nos jornais Opinião de Encantado e A Hora de Lajeado, em 24/2.


fevereiro 25, 2010

David Mourão-Ferreira

"Ao meio-dia em ponto
entre a sombra e o corpo
o reencontro..."

POR QUE, RENY?



então, um dia você consegue ir embora.
e consegue construir um barraco.
e do barraco você vê o mar.
e vê a lagoa.
você planta suas ervas e seus chás.
então, um dia você consegue se abster da carne.
medita todos os dias.
ora. crê. comunga.
divide seus conhecimentos.
você tem luz própria
e o clarão ilumina outros ao redor
tão sem luz.
então, um dia você pega sua bicicleta
e pedala contra o vento
.

.
.
.
.
.
então, nesse dia você encontra
a morte.

sem se despedir.

fevereiro 23, 2010

MARIANNE MOORE

Photo by Pedro Martinelli


“O sentimento mais profundo


sempre se mostra em silêncio.



Não em silêncio, mas contenção.”

InSôNiA


as duas da madrugada o guarda-noturno ri secretamente da minha privação em claro. quase 3 horas... e o vizinho bebum de pernas cambotas, se escorando no muro, descobre espantado minha vigília. e agora já passou mais uma hora e o ladrão amaldiçoa meus passos fora de tempo enquanto analisa as luzes acesas na casa. por que não pode ser essa, pelo menos uma única vez, a tua condição ó homem que deita ao meu lado? tenho acordado no meio da noite, em campo de batalha. guerrilha urbana na verdade, às vezes estou fugindo, buscando um esconderijo, renegando as armas. com medo dos tiros acordo com vergonha da minha própria covardia. esta noite foi diferente. empunhava uma metralhadora e disparava a esmo. acordei com minha reação: joguei uma bomba numa casa. vi a trajetória da bomba e seu rastro. ouvi a explosão e ouvi o silêncio. a causa? - me pergunto várias vezes quando desperto no meio das noites abafadas. a causa? – tento descobrir acordando com dor no maxilar de tanta tensão. só pode ser esses filhosdaputa que estão cortando as árvores da minha cidade. anarquicamente sinto vontade de convocar os pixadores da cidade e detonar com a prefeitura, com as ruas asfaltadas, com a casa do novo rico no alto do morro... esse que pediu para a prefa cortar as árvores. filhodaputa. sim, meus instintos assassinos me levam aos pesadelos de guerra e minha inércia ao despertar. são quatro e meia da madrugada. espasmos de chuva não refrescam a noite. apenas lavam as estrelas. impertubáveis e fiéis.

fevereiro 17, 2010

VIRGÍLIO

Photo by Pedro Martinelli
"Cada qual tem o seu prazer que o arrasta."
poeta romano, 70 a.C. - 19 a.C.

ESCUTAS NA COLÔNIA




Sentada no consultório, espero.

Revistas velhas.

Ventilador.

A secretária some.

As duas mulheres cochicham.

Consulto o relógio.

Atraso.

Revistas velhas...

Ventilador...

A secretária continua sumida.

As duas mulheres cochicham:

"Não chora. Não me vem aqui derramar uma só lágrima. Não vou admitir mesmo, porque na hora de trocar as fraldas dela nenhum de vocês apareceu. Agora deixem a morta aí no quarto que ela pode esperar. E vamos almoçar."

"Ele disse isso?"

"E fechou a porta deixando a esposa morta na cama."


Sentada no consultório, espero.
Lajeado é isso, também.

CAÇA AO TESOURO… *

Em 1950, o médico alemão Ernst Gräfenberg apresentou ao mundo o desconhecido e bem escondido Ponto G: “uma obscura zona erógena na mulher que se descobre no decorrer das nossas experiências sexuais” informou o doutor.

Uma grande maioria está procurando até hoje.

Melhor: um estudo britânico do King’s College, que analisou mais de 1,8 mil mulheres sexualmente ativas, concluiu que o tal ponto G era fruto da imaginação coletiva.

Putz... Então foi piada de alemão?

Os ingleses, tão lordes e formais, juram que a suposta zona erógena feminina, responsável por elevados níveis de excitação sexual e orgasmos, simplesmente não existe.
Agora, quando muitas já estavam se conformando,eis que surge um grupo de ginecologistas franceses que tentam provar o contrário: o Ponto G existe sim!

Bem, todo mundo sabe que são os franceses os fabricantes dos melhores perfumes, guardados nos limitados e menores frasquinhos… Como duvidar deles?

O cirurgião francês Pierre Foldès, co-autor de uma técnica para reparar os danos causados por excisões do clitóris, foi categórico:

"O estudo do King's College mostra falta de respeito em relação ao que as mulheres dizem. As conclusões estão completamente erradas porque foram baseadas somente em observações de ordem genética.”

Então é o seguinte: existem três idéias falsas sobre o Ponto G:

1 - pensar que ele está situado na mesma área em cada mulher.
2 – pensar que ele teria o tamanho de uma moeda de 5 centavos.
3 – pensar que ele permite ter sempre um orgasmo.

Para Foldès, o Ponto G “é uma área que cada mulher aprende a conhecer no decorrer das suas experiências sexuais. É provável que todas tenham um, mas apenas um terço delas conhece a sua existência”.

Pronto! Explicitaram de vez a galinhagem!
Já nem sei mais o que pensar, mas as comadres estão em polvorosas e a procura de.
Putz, tem gente que jura que já achou.

E se até o Luiz Inácio Lula da Silva já correlacionou o Ponto G e a Organização Mundial do Comércio, porque eu, em plena quarta-feira de cinzas, não escreveria?

Ainda mais numa época tão pertinente, não é mesmo?


* Minha crônica semanal publicadas nos jornais Opinião, de Encantado e A Hora, de Lajeado.

fevereiro 14, 2010

TITÃS

Photo by Mauro Vieira



Eu não sou da sua rua,

Não sou o seu vizinho.

Eu moro muito longe, sozinho.

Estou aqui de passagem.


Eu não sou da sua rua,

Eu não falo a sua língua,

Minha vida é diferente da sua.

Estou aqui de passagem.

Esse mundo não é

Meu, esse mundo não é seu.

ASSISTA...

Tartarugas Podem Voar, um filme de Bahman Ghobadi.

fevereiro 11, 2010

MADIBA in INVICTUS

Sou o senhor do meu destino,
Sou o capitão da minha alma.

DIVAGAÇÕES 40º...

Cinema é na capital.
Saio de um e entro no outro.
Depois quando volto para a realidade o ar não é refrigerado e alguém desligou a trilha sonora.
Numa das salas só eu e o casal dono do cinema.
Na outra, sozinha.
Sensação milionária com uma sala de projeção exclusiva.
Delícia.
Por aqui, desisti do mukifo no shopping.
Por falar em mukifo...
Minha turma dos anos 70... sacaneando com o fotógrafo Sebaldo!

... taí o carnaval de novo.
Taí essa pobreza de chorar tentando colorir o funesto carnaval de rua da minha cidade.
Terrível e desanimador.
Ah, não posso dizer isso? Não posso escrever?
E pensar, pode?


A questão não é achar um culpado: ta no DNA desse povo que sempre assistiu aos desfiles com uma empolgação de derrubar o mais esforçado puxador de samba.


Até hoje o comunicador se esguela no microfone: “vamos aplaudir, minha gente!”


No passado existiam quatro escolas que se esmeravam nos brilhos, no enredo, nas fantasias. Era a classe média e alta exibindo para a colonada a criatividade e o luxo, um luxo que acabou matando o carnaval – dizem.


A minha escola era mais modesta e reunia um pessoal ...ãnh... digamos alternativo, mas igualmente alienados. E ainda por cima nos chamavam de galinha, pode?

Pode.


A gurizada cresceu, os que carregavam mesmo as escolas nas costas desanimaram e ninguém se preocupou em passar o bastão para a pentelhada que vinha atrás.
Os pais não souberam transferir o seu prazer com o carnaval para os próprios filhos.
Hoje, na cabeça da gurizada Carnaval é verão e verão é Xangri-lá...


O povo?
Coitado do povo...
Não consegue se emocionar nem sonhar com o carnaval acinzentado da cidade pujante. Que carnaval é isso: fantasia. E às vezes um pouco de lança. Ou lance?
Cada gerente de bloco ou escola esta mais preocupado é com a grana que vai embolsar através do incentivo cultural e da premiação. Isso é tão antigo...

Coitado do povo. Só si fódi.

Mas também, quem manda não reclamar?


* JUNTANDO AS ESCOVAS...


Fiquei olhando as imagens de um casamento na vitrine do fotógrafo.

Os olhares felizes para o olho da câmera.
A noiva com os braços finos e os dentes brancos.
O noivo, de colarinho apertado, com as primeiras rugas na testa.
Melhor: marcas de expressão.

Corta: adivinhe quem escreveu essa sentença?

“A loucura e a razão estão perfeitamente delimitadas.
Sabe-se onde uma acaba e onde a outra começa.
Para que transpor a cerca?”

Corta e volta para a vitrine: não é insensatez rasgar dinheiro em festas onde a maioria sai dali criticando o vestido da mãe da noiva, a comida e o DJ?

Tem gente que chega a vender o carro para pagar a champagnhe da festa.

Tem noivo que nunca dançou na vida mas se expõe ao melodrama de um tango ensaiado.

Tem noiva racional que não tem amigos para convidar mas conhecidos para compor o álbum de fotografias.

Ah, casamento é do tempo do amor romântico: as pessoas se apaixonavam, casavam e aí conferiam a conta bancária. Discretamente.

Hoje não.
Começa pelo fim e muito abertamente: conta bancária, casamento, talvez a paixão.

Como disse brincando, mas disse, Maitê Proença num programa de tevê: “Eu só me apaixono por caras ricos!”.
Ao que retrucou a jornalista, Mônica Valdvogel: “Casamento é business: amor + dinheiro. Amor romântico só nos livros.
Uma brecha para a filósofa Márcia Tiburi: “Casam na igreja, mas não tem fé. Como aqueles que cursam uma faculdade, mas não tem educação, cultura.”

Opa, passou um filme na minha cabeça...
Mas também pensei nas amigas solteiras, separadas e viúvas: todas procurando um companheiro para dividir não só as contas, mas principalmente a solidão.

Como se não existisse a solidão a dois: dois computadores, dois televisores, dois quartos e cada um vivendo a sua vida, dividindo alguns amigos, se apoiando para esporádicos jantares de casais.
Casamento de vitrine: no apagar das luzes é preciso encarar o escuro do vazio a dois. As pessoas esquecem que conviver implica em intimidade. Coisa que nem sempre resiste a benção do padre.

Casamento como tábua de salvação ficou para trás, comentam elas enquanto jogam canastra nas terças-feiras.
Hoje a mulher se sustenta, paga sua própria cerveja, comanda seu destino e até filho pode ter sem a presença física do homem. Estão aí os bancos de esperma.
Elas se olham, concordam mas dizem que para facilitar o jogo um curinga sempre vem bem.

Odete está de casamento marcado com o Elísio.
Todas nós sabemos que Odete jamais olharia para um cara como o Elísio, feio, gordo e sem humor, se ele não tivesse o carrão e os cartões de crédito que tem.
Pior foi a Adelinha: casou, embarrigou e depois deu um pontapé no Wilmar, que paga uma bela pensão até hoje e ainda foi obrigado a deixar a linda casa para a ex que agora curte um garotão. Babaca, claro.

Sabe quem escreveu a frase lá em cima?
Machado de Assis.
Bárbaro, não é?
E ainda existem aqueles que insistem em transpor a cerca ao som de Ave Maria de Gounod.
* Minha crônica semanal publicadas nos jornais Opinião, de Encantado e A Hora, de Lajeado.

fevereiro 08, 2010

VINICIUS DE MORAES

"Quem de dentro de si não sai,
vai morrer sem amar alguém.”

CRUZ ALTA, ARRANCA, PISCAR...


arquivo pessoal
arquivo pessoal
*
Tô muito nostálgica mesmo...
Só quero relembrar meus anos dourados em Cruz Alta.
“Somos o que recordamos” escreve o pesquisador Ivan Izquierdo citando o filósofo Norberto Bobbio no artigo da ZH de hoje.

Graças a Zeus!

Enquanto as amigas passavam os verões em Xangri-lá, eu dourava a epiderme na beira da piscina do Clube Arranca, que tinha um trampolim de três andares. Era o máximo! Lembro até hoje do cheiro de cloro e do abafado vestiário do Arranca; da borda ao redor da piscina acimentada, sem azulejos; do frescor do matinho na entrada do Clube; de uma mesa de ping-pong numa área de lazer nunca terminada...


arquivo pessoal
*
Pois, meu último verão em Cruz Alta aconteceu aos 13 anos. Nessa idade endócrina e de cabelos alisados descobri que a paixão pode acontecer simultaneamente com diversas espécies do gênero masculino. Então, foi um deus me acuda...

Carrego a culpa, assim como minhas primas talvez, que a casa do vô João foi vendida e nossas férias encerradas em definitivo, porque havíamos descoberto que nem só de orelha suja e nariz ranhento viviam os meninos.

Não havia mais tempo para ler. Não havia mais tempo para refletir em cima das jabuticabeiras.
Era tempo de agir e as guerrinhas de abacate podre cederam lugar aos amassos atrás de uma touceira de ananás.
Falo em ler porque antes dos 13 anos tracei tudo que tinha para ser folheado num quartinho, cuja janela desbeiçava no telhado. E li quase tudo de Monteiro Lobato, sendo a identificação com a boneca Emília total.

Como são as coisas... Navegando na internet, descubro - embora realmente não me lembre - que a boneca de pano desdenhava doutores e os sabichões, apesar de citar nas sua Memórias um filósofo que diz que filosofia " são coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando".

E o diálogo com o Visconde de Sabugosa?

“...a vida, Senhor Visconde, é um pisca - pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas.
Cada pisco é um dia.
Pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?”

Ai... Será que pisquei bastante? O suficiente?
Escreve ainda Izquierdo: “Por isso é tão desolador perder memórias, e nos preocupa tanto: porque perdemos parte do que nos pertence, parte de nós.”

Nunca posso esquecer de piscar!

OS IMPERDOÁVEIS

Em maio ele completa 80 anos e em função da data longeva e profícua assisti um documentário na tevê sobre a vida de Clint Eastwood. Entre tantas lembranças, o ator cita o faroeste Os Imperdoáveis, de 1992. Corri para a locadora.

Filme americano, faroestão, não é a minha praia. Um dos raros foi na época da faculdade de jornalismo na Unisinos: Era uma Vez o Oeste e assim mesmo por sugestão e insistência do meu professor da cadeira de Cinema. Lembrava pouco, apenas do longo plano fechado nos olhos verdes de Charles Bronson e a bela trilha sonora de Ennio Morricone que depois quase se repetiria em Era uma vez na América.
Taí três excelentes sugestões para quem vai curtir o feriado de carnaval embaixo de um ventilador ou split.

Mas Os Imperdoáveis é um baita filme. É do tempo em que mil dólares era uma boa grana. “Este filme ameaça quebrar todas as regras do gênero faroeste. O velho Oeste é retratado sem romance, sem glamour e a violência é mostrada em toda sua crueza.” – diz o diretor, o próprio Clint.
Verdade, a cena do herói caído na lama do chiqueiro dá o tom da decadência do pistoleiro aposentado e o tombo no cavalo é humilhante para qualquer caubói durão.


O filme tem uma bela direção de arte e a trilha sonora é de dar um nó na garganta. Gene Hackman, numa excelente atuação de xerife vaidoso e sádico, ganhou um Oscar naquele ano; também traz Morgan Freeman que eu adoro e ainda apresenta um viés revisionista do feminismo através das prostitutas do Saloon, aliás, algo bem inusitado nas pradarias do Arizona hollywoodiano.

É um filme que se preocupa com detalhes. E estes fazem toda a diferença, permitindo que a magia do cinema aconteça, nos libertando por uns instantes dessa vidinha entediante para uma viagem no Tempo, nesse caso, nos tempos das diligências.


Detalhes significativos como silêncio e horizontes e coadjuvantes: “Eu sempre sinto que nos filmes, os papéis menores são o termômetro. Os papéis maiores você pode garantir, mas os papéis menores é que sustentam tudo.” – confessa Clint Eastwood.
Sim, esses papéis menores dão credibilidade ao filme e fazem a gente esquecer a própria insignificância quando depara com o reles aspirante a caubói, Schofield Kid, que parte atrás de uma recompensa, atraindo o velho Munny para um confronto com seu passado degenerado, onde a “a violência corrompe a alma”.

Após este filme, Clint chegou a pensar que seria o último filme em que atuaria como ator. Não foi, já comprovado em Gran Torino.
Se você é daqueles que também assiste os créditos, descobrirá que Os Imperdoáveis foi dedicado a Sergio e Don.
Adivinha?
Sergio Leone, o diretor de Era uma Vez o Oeste.




fevereiro 04, 2010

VAN GOGH

"Mas o caminho que sigo, tenho de manter,
se não fizer nada, se não estudar, se não procurar,
então estou perdido".

EXERCÍCIO FILOSÓFICO...

Arles, 28 de julho de 1890.

Meu prezado Vincent,

Que os bons ares de Auvers-sur-Oise recupere teu olhar.
Recebi a orelha.

Sê tua mesmo, quanta impessoalidade! Antes tivesse mandado outra parte do teu corpo, ora .

A enfermeira acabou de passar por aqui e mostrei o teu presente. Assim como eu ficamos nos perguntando: queres que o mundo te ouça? Queres projeção no des Savants? Ou simplesmente queres me afligir?

Pensando metafisicamente, quando olho, toco e cheiro tua orelha, essa parte do teu ser, reconheço como um nada. Separada do corpo, parece perder a identidade.


Assim, mandando apenas a orelha, penso que a transcendência de parte significativa (para você, meu caro, não para essa sua amiga) do teu corpo transforma-se também em arte – tua arte. Ou agora passa a ser minha arte?
Que não fiquemos “surdos” a ela no transcorrer do Tempo...

Não te pareces que, sem uma de tuas orelhas permaneces num meio- silêncio e passas a condição do teu devir pela eclipse do som?


E não te pareces também que a partir de agora, ouvirás apenas meias-palavras, meias-lembranças, meias-verdades?


No meu percepto, a condição é muito condizente com a pobreza dos tempos éticos e lingüísticos dessas nossas elites esquizofrênicas... Ou seriam linhas de fuga?

Vincent, meu caro, a enfermeira pensa que me insultas mandando tua orelha.

Quero crer que não foi essa tua intenção.
Tua orelha poder ser interpretada como uma forma narrativa de tuas angústias. Sê póstumo para a História, temo pela figura aberrante com que te reconhecerão no futuro. Uma pena!

Que tuas obras, ainda que expressionistas e modernas, e que tanto admiro, bem sabes, subvertam além dos paradigmas cínicos e hipócritas alojados nas instituições, inclusive nessa em que me encontro agora.

Aguarde pelo correio parte do meu eu, em retribuição.

tua Rachel


P.S. Soube por Theo que "La tristesse durera toujours.” Bobagem! Sobrevivendo a esse jângal, dias melhores haverão de nos sorrir.

Considerações

"A tristeza durará para sempre"– as últimas palavras de Van Gogh ao irmão Theo, antes do seu suicídio, no dia 28 de julho de 1890.

Journal des Savants - Diário dos Sábios – jornal francês.

Rachel – prostituta q recebeu a orelha.

Clínica psiquiátrica do Mosteiro de St. Paul, Auvers-sur-Oise, na Provença, onde Van Gogh foi internado e se suicidou.


H. Saint Rémy-de-Province, Arles/FR – outra clínica psiquiatra onde Van Gogh esteve internado e onde “internei" Rachel...