ÜBERDRUSS
agosto 30, 2018
MALVINA, UMA ANARQUISTA EM CRUZEIRO DO SUL
Domingo de sol, o bisneto de Malvina Hailliot Tavares, com
um copo de vinho branco na mão, sentou
com a gente no quintal e revelou um pouco de seus vestígios políticos.
Cavando a genealogia vão se descobrindo as afinidades, a importância que damos ao meio que vivemos, com quem você se
importa, o seu lado mais humano. Claro,
às vezes, um desvio empurra para outro
extremo.
A história sempre tem dois lados: de quem a viveu
intimamente e de quem a pesquisa.
E por que não uma terceira perspectiva?
A de quem se
apropria, ficcionalmente.
Por ora, o Google revela:
A professora e
poetisa Julia Malvina Hailliot Tavares foi considerada uma "anarquista" na sociedade gaúcha
dos anos 1890.
No Wikipédia, uma pioneira na defesa de uma educação libertária naquela pequena colônia do Vale do Taquari. A professora dava aulas sem empregar os castigos físicos e sem as manipulações impiedosas do ensino religioso. Não demorou, conquistou pais e filhos agricultores.
Nas histórias familiares, outra versão: exilada por Júlio de Castilhos como punição por
sua ideologia política, contraria aos interesses da época. São Gabriel de
Estrela é hoje a cidade de Cruzeiro do Sul, e lá Julia
Malvina viveu e foi enterrada no dia 16 de outubro de 1939, aos 72 anos de
idade.
“Apesar das adversidades Malvina persistiu no cargo professora
tomando para si a tarefa de educar as crianças da área rural daquela
localidade. Sem um prédio que servisse de escola inicialmente Malvina educou as
crianças em sua própria casa. Sua influência na região certamente superou o
espaço da educação das crianças alcançando toda a comunidade.”
(Procurando em todo cemitério...)
Logo, Julia Malvina Hailliot Tavares conquistou o respeito e a admiração dos
moradores com suas ações assistencialistas e educativas, inventando saraus com peças teatrais e recitais
poéticos. Sua pedagogia sensível incluía piqueniques e brincadeiras em sala de
aula, nada mais surreal naqueles tempos sisudos e sufocantes.
Julia Malvina, uma importante referencia cultural para
Cruzeiro do Sul, escrevia um diário com
poesias e observações sobre a sociedade gaúcha:
A esperança e a recordação
É o caminho que com certeza
São nossas companheiras
Nos leva ao ponto que desejamos
Nos momentos atrozes de saudade"
A valorização do conhecimento:
“Companheiras,
cursemos a escola,
Lá, brincando, se aprende a lição,
Alegremos aos pais e mestres,
Seja pois nosso Norte-instrução.”
O neto de Julia Malvina é o jornalista e escritor Flavio Tavares. Ele lembra que cresceu ouvindo de sua mãe as palavras
que a sogra dizia:
"A palmatória é amaldiçoada,
o castigo é um
horror."
Pelo contrario, Malvina acreditava em autoridade com
afetividade no trato com os alunos:
"O brio é sempre um bom sentimento,
mas cumpre que
acompanhe a doçura."
Malvina ensinava seus alunos a pensar. E com isso, a duvidar:
“Entende-se que a ação pedagógica de Malvina promoveu o
desenvolvimento de referenciais para o pensamento crítico, que permitiram aos
jovens assumirem posições sociais e políticas e possibilitaram o enfrentamento
de desafios com o mundo real.”
Eu só queria ter acesso ao diário de Julia Malvina, essa mulher idealista, determinada e que se entregou com paixão a uma educação libertadora.
"Malvina se despede do seu diário e da vida, com tristeza fala de todos os filhos que se foram, é uma fala
que evidencia solidão, pede coragem para enfrentar as adversidades da
vida e sua
narrativa assume um tom religioso:
Meu filho Memeco foi de muda para Mussum a 15 de julho
de 1931, vai querido filho, sê feliz, deixaste tua mãe triste sem um
filho neste lugar. Dai-me coragem Deus de bondade. Deodina e Queta se foram para
Anta Gorda em11 de outubro de 1931 me deixando numa tristeza grande e
doente de meu coração, sejam felizes queridos filhos com seus queridos
filhinhos. As saudades que sinto são grandes, bem grandes, coragem Deus
dê bondade para esta pobre e triste bem triste velha...”
Se meu vizinho Tidão Tavares queria aguçar minha curiosidade,
conseguiu.
Fui hoje a Cruzeiro do Sul. Depois de visitar um cemitério e não encontrar nada, cheguei até a Casa Canônica. Lise atendeu com muita simpatia e ficou de falar com a
mãe, que poderia saber algum episódio sobre Malvina. Ela mesma desconhecia a história. Segui até o segundo cemitério. Quando já desistia, uma emoção...
Adorei saber de uma voz feminina e diferenciada, em pleno século XIX, na minha região – o que
me comove e orgulha.
Com certeza, Julia Malvina Hailliot Tavares deveria patronear
uma das cadeiras da Academia Literária
do Vale do Taquari, inspirando pensamentos vanguardistas.
Infelizmente, Malvina não resistiu à memória da cidade onde viveu. Nada que impeça de buscar o tempo perdido.
Leitura: “Uma história de vida e de trabalho: a educadora Julia Malvina Hailliot Tavares”, de Dóris
Bittencourt Almeida.
“No entre tempos da memória historiográfica: os itinerários
de duas professoras”, de Carlos Gilberto
Pereira Dias http://www.entremeios.inf.br/published/110.pdf
https://www.researchgate.net/publication/276345286_Escritura_marginais_fragmentos_de_memorias_da_professora_Malvina_Tavares_1891_-_1930
agosto 17, 2018
OBITUARIO
Desci na rodoviária.
Para quem não conhece as redondezas da minha cidade: em frente ao
presídio, ao lado do cemitério.
(Escolha como quer desembarcar nessa vida...)
Na câmara mortuária, um velório.
Pouca gente.
No proclama - João da Silva.
Sim, apenas, João da Silva.
Quantos Joãos da Silva nessa cidade? No país?
(Aproximadamente 122.000.000
resultados em 0,56 segundos)
Quantos Joãos da Silva você
conhece?
Meu avô era João, meus irmãos, um
filho, um neto, alguns amigos.
Nenhum João da Silva.
Prenome e sobrenome: remete à simplicidade, à suor, calos
nas mãos, ranhuras na sola dos pés.
Morreu de morte morrida?
Ou no corredor do Sus?
De desgosto, de desesperança?
Morreu de tanta ambição?
Morreu velhinho?
João da Silva. Ver o cpf. Atestado de óbito. Carimba-se.
É tudo o que se sabe. Agora, descansa junto aos vermes.
agosto 16, 2018
MUSEU DO ALJUBE: SEM MEMÓRIA NÃO HÁ FUTURO
O Doi-Codi de Portugal chamava-se PIDE.
Andando pelas ruas de Lisboa,
descobrimos por acaso, próximo à Sé...
Um museu para honrar a Resistência
contra o fascismo,
durante a ditadura portuguesa.
Inaugurado em abril de 2015.
Não deixe de visitar.
Visita guiada as 15 horas.
As fotos falam do meu assombro e emoção:
legendas dispensaveis.
A vista da Baixa:
Não me espantaria
se o passado voltasse ao Brasil.
Composição gráfica do rosto de Amável Vitorino
com fotografias dos rostos de centenas de presos políticos.
“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”
Sophia Andresen,
poeta portuguesa
Rua de Augusto Rosa, 42
E no Brasil?
Quando será revelado
o que temos direito de saber?
MAMMA MIA: LÁ VAMOS NÓS DE NOVO!
Entro no cinema vazio. Sessão das duas. Minto, na ultima
fila, na carreira da letra J, uma criatura e seu rosto iluminado pela luz
branca de um celular.
Tenho 10 min para descansar.
Ou para ler o livro que acabei de comprar.
Cinemas deveriam ser como cavernas: escuras e silenciosas. Só que não: uma música irritante toca alto. Não consigo me concentrar. Nem descansar.
Entra um casal com um saco gigante de pipoca – aqui não,
aqui não, aqui não, meu deus.
Entra uma senhora. Senta quatro carreiras abaixo da
minha. O cheiro do seu perfume chega até onde estou. É enjoativo. Cheiros,
cheiros, cheiros. Sou uma chata.
Entra uma excursão de meia-idade: 14 mulheres de algum clube
suspeito escalam vagarosamente cada um dos
degraus iluminados. Sobem, sobem e param na fila G. A minha.
Todo o cinema vazio e elas escolhem sentar justo
na minha fila?
Educada, levanto para passarem com suas bolsas e sacolas, ruidosas
e perfumadas como um bando de estudantes tagarelas.
O filme começa. ABBA foi brega e sempre será. O filme é uma bosta. Mas, vale
rever Cher e não havia outro naquele horário.
Sou uma chata, mereço.