março 13, 2021

CLARICE LISPECTOR



 "Todo silêncio tem

um nome

e um motivo."


MEMÓRIA PRESERVADA EM LINHA ANDRÉAS

 


“Os verdadeiros paraísos são os paraísos que se perderam.”  

Marcel Proust.


OS MORTOS FALAM

Passando o sugestivo Morro Chapéu de Açúcar, passando as plantações de milho, de tabaco, muito eucalipto e uns retalhos de floresta virgem por entre duas íngremes encostas, passando por  uma estradinha empoeirada - ou lamacenta, depende o humor do tempo – chega-se à Linha Andréas, distante 25 quilômetros de Venâncio Aires.

Façamos um afago à imaginação...

(foto ilustrativa)

O ano é 1876 e cerca de cem imigrantes alemães, da região da Boêmia, chegam com sacos de sementes e ferramentas para derrubar o arvoredo ante os olhares assustados das capivaras, onças-pardas, bugios, tatus e dezenas de outros animais que circulavam livremente pela região maior que compreende o Vale do Taquari e Rio Pardo.

(foto ilustrativa)

Depois de erguerem as moradias, de amanhar a terra, chega logo à vez da igrejinha e da escola. E depois? Onde encontrar os companheiros da longa travessia marítima até o Brasil, até a capital gaúcha, até essa lonjura inexplorada? Onde sentar para compartilhar as conversas sobre picadas de cobras, os últimos partos na colônia ou sobre a regência da Princesa Isabel? Onde se encontrar para beber a cerveja recém-fabricada e provar as deliciosas receitas de cucas trazidas dos confins de Böhmen? E onde se reunir para entoar e dançar as alegres canções quase emudecidas na grande viagem? 

E onde trocar os livros e dividir os conhecimentos que trouxeram consigo?



Quinze anos depois da chegada desses imigrantes é ergue-se na densa mata a Sociedade de Canto Jovialidade. Uma iniciativa dos Endler, Hermann, Rohsler, Lang,  Wazlawovsky, Albrecht, Posselt e tantos outros como Josef Umann, preocupados em iniciar uma biblioteca ambulante com os 400 livros que vieram protegidos entre as bagagens dos alemães, na verdade, povo de nacionalidade austro-húngaro, atual República Tcheca.

Os mortos nos falam até hoje de sua cultura, de seus sonhos, de suas angústias nas paginas dos livros. Acredite, num tempo distante, sem radio e televisão, sem internet, as pessoas liam. Para se distrair, para aprender, para fugir da opressão. E liam em alemão gótico.

 

VESTÍGIOS DE UMA RESISTÊNCIA


(foto ilustrativa)

Essa fala, essa memória dos antepassados, se mantem incrivelmente preservada na Biblioteca Comunitária da atual Associação de Leitura e Canto Jovialidade, de Linha Andréas, no Vale do Sampaio.

É um patrimônio de valor inestimável, um testamento cultural dos imigrantes alemães que aqui desembarcaram há 145 anos, depois das sesmarias loteadas e divididas em linhas. Vieram para rasgar a facão as terras férteis junto ao  Arroio Sampaio, de leito pedregosos e  cujas águas já foram mais límpidas e abundantes. Vieram para reconstruir um novo mundo.

E para a sobrevivência emocional e espiritual dos recém-chegados logo formariam os vereine  (associações), com finalidades recreativas e culturais. As raízes do atual grupo de coral datam de 1892 quando fundada a Sociedade de Canto Frohsin, assim como a biblioteca à beira da estrada empoeirada, infelizmente com fissuras do Tempo - alguns vidros quebrados e a necessidade de consertos na sua fachada.


O ACERVO

Em 1904, ano da revolta da vacina contra a varíola, os descendentes germânicos agregam a biblioteca ao prédio provisório da Sociedade de Leitura e Canto Jovialidade Alto Sampaio. Em 1910 a Sociedade já tinha cadastrado 60 sócios e 530 livros. Em 1923 seriam 2.000 volumes entre manuscritos góticos, atas, documentos, diários.

 Dez anos depois, a comunidade construiria o prédio atual de madeira, garantindo dessa forma a resistência cultural de sua identidade histórica e o espírito fraterno das reuniões literárias e musicais. E lá dentro, uma pequena peça de 40 m2, guardados em um grande e belo armário de Cabreúva, para o espanto de todo visitante, os cerca de quatro mil livros catalogados.


RECUO HISTÓRICO



 Durante a Segunda Guerra Mundial, a língua e a leitura alemã foram proibidas no Brasil. Logo, todos os livros se viram confiscados pelo delegado da época, Guilherme Mariante, que os jogou no porão do Judiciário de Venâncio Aires. Talvez não contasse com uma enchente que alagaria o local danificando grande parte das obras. Com o fim da carnificina em 1945, o resgate dos livros.  Porém, só a metade. Muitos completamente mofados e esfarelados. Esse também o destino do primeiro catálogo da biblioteca com todos os títulos e anos de aquisição de cada exemplar doado ou comprado.

Hoje, uma série de livros com capas idênticas, vermelhas, chama atenção no armário da biblioteca. Obra primorosa do ex-presidente da Sociedade, Otto Albrecht, que restaurou os menos avariados pelas águas daquela enchente. 



OS GUARDIÕES



 Em outubro de 1983, a biblioteca foi reconhecida pelo Instituto Nacional do Livro, junto ao MEC, e recebeu um certificado de registro, sob o número 23.559. Infelizmente, não assinado  pelo diretor do INL da época.  

 No ano de  2005, a comunidade alterou o nome do clube que passou a se chamar Associação  de Leitura e Canto Jovialidade de Linha Andréas.

 Logo depois, em julho de 2006, o ex-governador Germano Rigotto conheceu a biblioteca por ocasião da Festa do Colono. Desceu de helicóptero no campo de futebol da Sociedade, um fato político raro que ficou na lembrança dos moradores.

Quando Venâncio Aires recebeu o 23º Fórum Gaúcho pelas Melhorias das Bibliotecas Escolares, em julho de 2011, o Conselho de Biblioteconomia e o Instituto Goethe, de Porto Alegre vieram até Linhas Andréas para conhecer a biblioteca perdida no tempo.

Na época, o governo de Venâncio Aires revitalizou o prédio prestando alguns consertos, pintura e aquisição de um novo armário para acomodar melhor as centenas de romances, contos, novelas policiais, expedições e histórias infantis, dicionários, revistas, canções populares em língua alemã.

 

ENTREVISTA



Iolandi Flávia Schmidt, 67, moradora de Linha Andréas, é a atual guardiã da biblioteca. Antes dela passaram outros “protetores” com os sobrenomes de Wazlawovsky, Pohl, Schubert, Richter, Albrecht -  esse último escondia carteiras de cigarro entre os livros: “O tabaco é bom para espantar as traças.” – revelou anos depois Herr Albrecht, quando Iolandi ainda era uma jovem professora na pequena comunidade. Seu retrato, assim como de Rudiberto Pohl e Edmundo Dattein ganharam uma singela homenagem. Tem suas fotografias coladas na parede da biblioteca.

Qual a sua relação com Linha Andréas? 

Moro aqui desde que nasci. Saí apenas para estudar. Fui normalista e depois cursei a Faculdade de Estudos Sociais, na antiga Fates, de Lajeado. Sou casada com Enson Schmidt,  vice-presidente da Sociedade. Tenho uma filha, Carina que mora em Köln, na Alemanha, onde cursou Direito Internacional.


Desde quando a senhora é responsável pela biblioteca?

Desde 2013. Cheguei à biblioteca como membro da diretoria da nossa associação. Alguém precisava ocupar o cargo de bibliotecária e eu fui indicada pelo presidente. Sou responsável por receber visitantes, pesquisadores e escolares. É só fazer um breve agendamento comigo ou alguém da diretoria, em qualquer dia para visitas e pesquisas. Até hoje tem gente que vem pesquisar para saber dos seus descendentes.

Ainda existe o hábito de leitura na Linha Andréas?

Existia. Nossos antepassados liam muito. O lazer era a leitura e o canto de coral, preservado até hoje. Essa biblioteca é um patrimônio que devemos guardar sempre, tendo em vista o zelo de nossos antepassados que atravessaram o oceano e trouxeram vários livros em sua bagagem. Eram preocupados com a sua cultura. Até o ano passado, dona Irmgard vinha de Venâncio Aires pesquisar e ler em alemão gótico. Mas faleceu.  Infelizmente, hoje o pessoal só quer saber de futebol e internet e quase ninguém mais lê.


Quem pode retirar os livros?

 Ninguém pode retirar mais. Cada vez que alguém fazia pesquisa, alguns livros não mais  voltavam. O acervo que temos foi doado pelos próprios imigrantes e seus descendentes. E muitos adquiridos nas livrarias de Porto Alegre. Hoje temos aqui cerca de quatro mil livros, entre eles alguns raros, conforme os professores da Ufrgs e  visitantes de outros países como Alemanha, Tchecoslováquia e  Argentina. Alguns desses livros já não existem na própria Alemanha, em virtude das guerras.

Qual o valor  desse acervo em um lugar tão distante dos grandes centros?

Quanto ao valor do acervo não sei opinar... A maioria dos livros é em alemão e alemão gótico, o que dificulta muito o interesse pela leitura. É difícil ver os jovens nas bibliotecas, ainda mais uma como a nossa.

A biblioteca recebe algum tipo de subvenção?

Não. A biblioteca sobrevive das mensalidades dos sócios, que não são mais de 300 e parte dessa renda vai para o time de futebol.

Qual o futuro desse patrimônio?

É uma incógnita. Os jovens abandonam cada vez mais o interior, e cada vez é menor o interesse por essas histórias e culturas que nós lutamos para preservar. Gostaria que  eles percebessem que a biblioteca é um local sagrado, uma riqueza viva.

 

A ex-professora Iolandi e o repórter e fotógrafo Alício de Assunção -  jornal  Informativo do Vale, de Lajeado/RS - idealizador dessa reportagem.


CURIOSIDADES



O livro mais antigo: de 1875, “Der Christlichen Staat”  (O estado cristão). Uma doação recebida em 1972.

Um livro raro: de 1914,  “Aus Meinem Leben” (Da minha vida), escrito em alemão gótico, traz a autobiografia de Augus Bebel, um dos fundadores do antigo Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (1874),  filiado a Internacional Socialista, hoje o  Partido Social-Democrata da Alemanha, tão perseguido durante o 3º Reich.

Um livro indiscreto: de 1912, “Die dirne und ihr Anhang” (A prostituta e seus dependentes), historia da vida sexual alemã.

Um livro divertido: de 1923, “Der Floh und der Geiger” (A Pulga e o violinista).

Um livro gaúcho: de 1933, “O Tesouro do Arroio do Conde: novela histórica do Rio Grande do Sul  setecentista”, de Aurélio Porto, ex-intendente de Montenegro, jornalista e poeta. Um dos poucos livros em português.

 

130 ANOS EM 2022



Hoje, Linha Andréas talvez não chegue a 300 casas, a maioria muito distante uma das outras. Mas o número de cemitérios na região atesta que numerosas famílias já viveram por aqui.

A pandemia não poupou os moradores quase isolados e a Sociedade também se viu obrigada a fechar as portas. Acabaram as ruidosas confraternizações do Clube da 3ª idade Frohsin. Acabaram os jogos de bocha. Acabaram os ensaios dos 23 componentes do Coral, contemplado com a Lei Aldir Blanc. Acabaram as rodas de cerveja e chimarrão e a boa prosa em dialeto hunsrückisch entre os sócios.


O TEMPO NO PRETÉRITO

Dia 1º de março seria festejado os 129 anos da Sociedade de Leitura e Canto Jovialidade Linha Andréas. Haveria um grande kerb e uma cerimônia religiosa ecumênica para católicos e evangélicos.

 “É nestes dias de festa que as pessoas  retornam a Linha Andréas e matam a saudade da biblioteca. Uma viagem no Tempo.” – diz a professora Iolandi.

Antes de encerrar a reportagem confiro a galeria externa de ex-presidente e de repente ouço risadas e sussurros em alemão. Perto, um grupo de quatro senhoras jogavam cartas, mantendo a tradição do encontro animado. Tempo presente: todas covideiras.



 Conheci um paraíso que não se perdeu mas aguarda, 
silencioso e solitário, que o descubram.

Laura Peixoto