MEMÓRIA PRESERVADA EM LINHA ANDRÉAS
“Os verdadeiros paraísos são os paraísos que se perderam.”
Marcel Proust.
OS MORTOS FALAM
Passando o sugestivo Morro Chapéu de Açúcar, passando as
plantações de milho, de tabaco, muito eucalipto e uns retalhos de floresta
virgem por entre duas íngremes encostas, passando por uma estradinha empoeirada - ou lamacenta,
depende o humor do tempo – chega-se à Linha Andréas, distante 25 quilômetros de
Venâncio Aires.
Façamos um afago à imaginação...
O ano é 1876 e cerca de cem imigrantes alemães, da região da
Boêmia, chegam com sacos de sementes e ferramentas para derrubar o arvoredo
ante os olhares assustados das capivaras, onças-pardas, bugios, tatus e dezenas
de outros animais que circulavam livremente pela região maior que compreende o
Vale do Taquari e Rio Pardo.
Depois de erguerem as moradias, de amanhar a terra, chega logo à vez da igrejinha e da escola. E depois? Onde encontrar os companheiros da longa travessia marítima até o Brasil, até a capital gaúcha, até essa lonjura inexplorada? Onde sentar para compartilhar as conversas sobre picadas de cobras, os últimos partos na colônia ou sobre a regência da Princesa Isabel? Onde se encontrar para beber a cerveja recém-fabricada e provar as deliciosas receitas de cucas trazidas dos confins de Böhmen? E onde se reunir para entoar e dançar as alegres canções quase emudecidas na grande viagem?
E onde trocar os livros e dividir os conhecimentos que trouxeram consigo?
Os mortos nos falam até hoje de sua cultura, de seus sonhos,
de suas angústias nas paginas dos livros. Acredite, num tempo distante, sem
radio e televisão, sem internet, as pessoas liam. Para se distrair, para
aprender, para fugir da opressão. E liam em alemão gótico.
VESTÍGIOS DE UMA
RESISTÊNCIA
Essa fala, essa memória dos antepassados, se mantem incrivelmente preservada na Biblioteca Comunitária da atual Associação de Leitura e Canto Jovialidade, de Linha Andréas, no Vale do Sampaio.
É um patrimônio de valor inestimável, um testamento cultural
dos imigrantes alemães que aqui desembarcaram há 145 anos, depois das sesmarias
loteadas e divididas em linhas. Vieram para rasgar a facão as terras férteis
junto ao Arroio Sampaio, de leito
pedregosos e cujas águas já foram mais
límpidas e abundantes. Vieram para reconstruir um novo mundo.
E para a sobrevivência emocional e espiritual dos
recém-chegados logo formariam os
vereine (associações), com
finalidades recreativas e culturais. As raízes do atual grupo de coral datam de
1892 quando fundada a Sociedade de Canto Frohsin, assim como a biblioteca à
beira da estrada empoeirada, infelizmente com fissuras do Tempo - alguns vidros
quebrados e a necessidade de consertos na sua fachada.
O ACERVO
Dez anos depois, a
comunidade construiria o prédio atual de madeira, garantindo dessa forma a
resistência cultural de sua identidade histórica e o espírito fraterno das
reuniões literárias e musicais. E lá dentro, uma pequena peça de 40 m2,
guardados em um grande e belo armário de Cabreúva, para o espanto de todo
visitante, os cerca de quatro mil livros catalogados.
RECUO HISTÓRICO
Durante a Segunda
Guerra Mundial, a língua e a leitura alemã foram proibidas no Brasil. Logo,
todos os livros se viram confiscados pelo delegado da época, Guilherme
Mariante, que os jogou no porão do Judiciário de Venâncio Aires. Talvez não
contasse com uma enchente que alagaria o local danificando grande parte das
obras. Com o fim da carnificina em 1945, o resgate dos livros. Porém, só a metade. Muitos completamente
mofados e esfarelados. Esse também o destino do primeiro catálogo da biblioteca
com todos os títulos e anos de aquisição de cada exemplar doado ou comprado.
Hoje, uma série de livros com capas idênticas, vermelhas,
chama atenção no armário da biblioteca. Obra primorosa do ex-presidente da
Sociedade, Otto Albrecht, que restaurou os menos avariados pelas águas daquela
enchente.
OS GUARDIÕES
Em outubro de 1983, a
biblioteca foi reconhecida pelo Instituto Nacional do Livro, junto ao MEC, e
recebeu um certificado de registro, sob o número 23.559. Infelizmente, não
assinado pelo diretor do INL da
época.
No ano de 2005, a comunidade alterou o nome do clube que
passou a se chamar Associação de Leitura
e Canto Jovialidade de Linha Andréas.
Logo depois, em julho
de 2006, o ex-governador Germano Rigotto conheceu a biblioteca por ocasião da
Festa do Colono. Desceu de helicóptero no campo de futebol da Sociedade, um
fato político raro que ficou na lembrança dos moradores.
Quando Venâncio Aires recebeu o 23º Fórum Gaúcho pelas
Melhorias das Bibliotecas Escolares, em julho de 2011, o Conselho de
Biblioteconomia e o Instituto Goethe, de Porto Alegre vieram até Linhas Andréas
para conhecer a biblioteca perdida no
tempo.
ENTREVISTA
Iolandi Flávia
Schmidt, 67, moradora de Linha Andréas, é a atual guardiã da biblioteca.
Antes dela passaram outros “protetores” com os sobrenomes de Wazlawovsky, Pohl,
Schubert, Richter, Albrecht - esse
último escondia carteiras de cigarro entre os livros: “O tabaco é bom para
espantar as traças.” – revelou anos depois Herr Albrecht, quando Iolandi ainda
era uma jovem professora na pequena comunidade. Seu retrato, assim como de
Rudiberto Pohl e Edmundo Dattein ganharam uma singela homenagem. Tem suas
fotografias coladas na parede da biblioteca.
Qual a sua relação com Linha Andréas?
Moro aqui desde que nasci. Saí apenas para estudar. Fui
normalista e depois cursei a Faculdade de Estudos Sociais, na antiga Fates, de
Lajeado. Sou casada com Enson Schmidt, vice-presidente da Sociedade.
Tenho uma filha, Carina que mora em Köln, na Alemanha, onde cursou Direito
Internacional.
Desde quando a senhora é responsável pela biblioteca?
Desde 2013. Cheguei à biblioteca como membro da diretoria da
nossa associação. Alguém precisava ocupar o cargo de bibliotecária e eu fui
indicada pelo presidente. Sou responsável por receber visitantes, pesquisadores
e escolares. É só fazer um breve agendamento comigo ou alguém da diretoria, em
qualquer dia para visitas e pesquisas. Até hoje tem gente que vem pesquisar
para saber dos seus descendentes.
Ainda existe o hábito de leitura na Linha Andréas?
Existia. Nossos antepassados liam muito. O lazer era a
leitura e o canto de coral, preservado até hoje. Essa biblioteca é um
patrimônio que devemos guardar sempre, tendo em vista o zelo de nossos
antepassados que atravessaram o oceano e trouxeram vários livros em sua
bagagem. Eram preocupados com a sua cultura. Até o ano passado, dona Irmgard
vinha de Venâncio Aires pesquisar e ler em alemão gótico. Mas faleceu. Infelizmente, hoje o pessoal só quer saber de
futebol e internet e quase ninguém mais lê.
Quem pode retirar os livros?
Ninguém pode retirar mais. Cada vez que alguém fazia
pesquisa, alguns livros não mais voltavam. O acervo que temos foi doado
pelos próprios imigrantes e seus descendentes. E muitos adquiridos nas
livrarias de Porto Alegre. Hoje temos aqui cerca de quatro mil livros, entre
eles alguns raros, conforme os professores da Ufrgs e visitantes de
outros países como Alemanha, Tchecoslováquia e Argentina. Alguns desses
livros já não existem na própria Alemanha, em virtude das guerras.
Qual o valor desse acervo em um lugar tão distante
dos grandes centros?
Quanto ao valor do acervo não sei opinar... A maioria dos
livros é em alemão e alemão gótico, o que dificulta muito o interesse pela
leitura. É difícil ver os jovens nas bibliotecas, ainda mais uma como a nossa.
A biblioteca recebe algum tipo de subvenção?
Não. A biblioteca sobrevive das mensalidades dos sócios, que
não são mais de 300 e parte dessa renda vai para o time de futebol.
Qual o futuro desse patrimônio?
É uma incógnita. Os jovens abandonam cada vez mais o
interior, e cada vez é menor o interesse por essas histórias e culturas que nós
lutamos para preservar. Gostaria que eles percebessem que a biblioteca é
um local sagrado, uma riqueza viva.
CURIOSIDADES
O livro mais antigo: de 1875, “Der Christlichen Staat” (O estado cristão). Uma doação recebida em 1972.
Um livro raro: de 1914,
“Aus Meinem Leben” (Da minha vida), escrito em alemão gótico, traz a
autobiografia de Augus Bebel, um dos fundadores do antigo Partido Socialista
dos Trabalhadores da Alemanha (1874),
filiado a Internacional Socialista, hoje o Partido Social-Democrata da Alemanha, tão
perseguido durante o 3º Reich.
Um livro indiscreto: de 1912, “Die dirne und ihr Anhang” (A
prostituta e seus dependentes), historia da vida sexual alemã.
Um livro divertido: de 1923, “Der Floh und der Geiger” (A Pulga e o violinista).
Um livro gaúcho: de 1933, “O Tesouro do Arroio do Conde:
novela histórica do Rio Grande do Sul
setecentista”, de Aurélio Porto, ex-intendente de Montenegro, jornalista
e poeta. Um dos poucos livros em português.
130 ANOS EM 2022
Hoje, Linha Andréas talvez não chegue a 300 casas, a maioria
muito distante uma das outras. Mas o número de cemitérios na região atesta que
numerosas famílias já viveram por aqui.
A pandemia não poupou os moradores quase isolados e a
Sociedade também se viu obrigada a fechar as portas. Acabaram as ruidosas
confraternizações do Clube da 3ª idade Frohsin. Acabaram os jogos de bocha.
Acabaram os ensaios dos 23 componentes do Coral, contemplado com a Lei Aldir
Blanc. Acabaram as rodas de cerveja e chimarrão e a boa prosa em dialeto hunsrückisch
entre os sócios.
O TEMPO NO PRETÉRITO
Dia 1º de março seria festejado os 129 anos da Sociedade de Leitura e Canto Jovialidade Linha Andréas. Haveria um grande kerb e uma cerimônia religiosa ecumênica para católicos e evangélicos.
“É nestes dias de festa que as pessoas
retornam a Linha Andréas e matam a saudade da biblioteca. Uma viagem no
Tempo.” – diz a professora Iolandi.
Antes de encerrar a reportagem confiro a galeria externa de
ex-presidente e de repente ouço risadas e sussurros em alemão. Perto, um grupo
de quatro senhoras jogavam cartas, mantendo a tradição do encontro animado.
Tempo presente: todas covideiras.
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