junho 14, 2010

A ESTRANGEIRA

No dia em que “a maior banda do mundo de fuzileiros navais” se apresentou em Lajeado, por uns instantes, a Outra roubou as atenções dos outros - minusculamente, nós.


A Outra era dona Antoninha – vamos dizer assim – que marchava entre as evoluções dos músicos, indiferente ao nosso espanto irônico e seduzida pelas vibrações dos tambores e reverberações dos metais, acompanhava tudo, alienadamente feliz.


Ou muito pelo contrário: inserida num todo se mostrava absurdamente feliz.
Posso imaginar a sensação dela.


Não deve ser muito diferente de alguém que no meio de uma bateria de escola de samba – alienada ou absurdamente feliz – acompanha no pé e com o corpo a batida forte dos surdos e tamborins. Tudo vibra e o som parece implodir o peito como se nossa carcaça fosse pele de um repique, de uma caixa de guerra ou qualquer outro instrumento da bateria. Tudo ressoa na maior harmonia.


Mas, naquela manhã ensolarada no Parque dos Dick, entre os fuzileiros, dona Antoninha era uma Outra, a estranha. Não confundir com a outra do mundo literário de Nelson Rodrigues, não falo da amante. Te liga aí.


Para a Filosofia existe o conceito de Estrangeiro, visto por uns como revitalizante social. Menos aqui na região, claro.

Então, assistindo dona Antoninha, autêntica e sensível, no meio da “maior banda do mundo”, distingui a Estrangeira: aquela que não segue os padrões esperados pela sociedade e sujeito as normas de interação.


Dona Antoninha, como outros conhecidos nossos, destoa, incomoda, constrange e por isso alguém da prefeitura ou de alguma entidade cortou o barato dela subtraindo-a do prazeroso envolvimento musical.

Na verdade, a presença do Estrangeiro – ligado? versão feminina: dona Antoninha – incomoda porque não sabemos de suas reações. Não temos acesso ao seu mundo interno e distante. A sociedade não suporta a condição dos transgressores de regras, como se essas não fossem quebradas, religiosamente, todo o tempo em casa, na escola, no trabalho, na rua. Mesmo naquele dia, com um atraso de 40 minutos. Só que ninguém ousou berrar – regra quebrada - transfiram eles daqui. Ou cancelem.
Pela sua simples existência, dona Antoninha não deixa de ser provocação, vivendo à margem da barra social e, na maioria das vezes, familiar.

Gosto muito de um filme chamado “As Confissões de Henry Fool” que mostra como dois personagens estranhos e deslocados na sociedade filtram o mundo de maneira diferente.

O pensador francês Michel Foucault garantia que o corpo é um lugar ao qual estamos condenados. Então, imaginem a mente!
Para compreender como se relacionam as pessoas ao seu redor, um dos personagens do filme, Simon, precisará viver algumas experiências interessantes até alcançar um desenvolvimento social, até conseguir decodificar as relações de poder no seu mundo.


Fool e Simon são “estrangeiros”, são estranhos. E no entendimento geral, estranhos não tem voz. Nem vez.
Conceito comprovado ao expulsarem dona Antoninha do interior da “maior banda do mundo”...

À propósito, “As Confissões de Henry Fool” está disponível na Xok Vídeo.


* Minha crônica nos jornais A Hora, Opinião, portal Região dos Vales, na semana passada

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