novembro 29, 2022

pEnsAndO Aki...


 

“Amigos telefônicos são preciosos. E por isso mesmo, raros. 

Eu tenho três ou quatro, e bastam. 

Amigo telefônico é assim: você só fala por ele por telefone. Ou fala pessoalmente também, mas é completamente diferente.

Quando você encontra muito seguido um amigo telefônico, a amizade se divide em duas amizades paralelas: 

a que acontece cara a cara, e a que acontece telefonicamente.

Esta sempre mais funda.

Há coisas que só se diz por telefone. 

Telefone elimina rosto, gesto, movimento: a voz fica absoluta. 

O que a voz diz, ao telefone, é tudo, porque por trás dela não acontece nada como um franzir de sobrancelhas, um riso no canto da boca. 

E se acontece, você não vê. O que você não vê praticamente não acontece. Ou acontece tão vagamente que é como se não.

(...)

Amigo telefônico é noturno. A vontade de falar com ele costuma acontecer quando não há mais nada interessante na TV, quando todos os livros e todos discos do mundo não matariam a sede de ouvir uma voz humana dizendo coisas que respondam ou complementem ou rebatam outras coisas que a sua voz vai dizendo.

E vai dizendo sem preocupação de ordem, de lógica, de senso. 

Com amigo telefônico, toda preocupação de parecer lúcido, consciente & equilibrado é inteiramente desnecessária. Se uma terceira pessoa ouvisse um papo entre dois velhos amigos telefônicos, provavelmente acharia completamente louco.

Na amizade telefônica, a lógica é tão sutil que parece não existir. 

Mas existe.

Há também os silêncios.

Silêncio de amizade-cara-a-cara quase sempre soa (?) constrangedor.

As pessoas desviam os olhos, acendem cigarros, fazem comentários tipo nada-a-ver,

só para quebrar o silêncio.

Em amizade telefônica, nunca:

um fica ouvindo a respiração do outro durante muito tempo. E não precisa dizer nada.


Caio Fernano Abreu

in Jornal O Estadão/ 27 de maio de 1986.

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