março 15, 2017

FIGURAS INESQUECíVEIS



(Arquivo Sebaldo Hammes)

A minha infância anda muito desfocada, que agonia... 
Melhor assim do que insistir na opacidade de tempos nem tão inocentes, como queria a família.
Num esforço de chocalhar o juízo, vejo com tristeza que muito pouco das ranhuras da memória se salvaram -  infelizmente. Por que o nhem-nhem?

Para registrar os assombros dos oito anos com os personagens do meu trajeto biográfico. Embora, o padre Antonio Vieira tenha escrito que os poetas não precisam se ater aos compromisso com a Verdade, porém, com a verossimilhança. Não sou poeta, mas assimilei a idéia como cronista inventariante dos personagens de antanho, que subiam e desciam pelas calçadas da cidade. 

Então, alguém ainda lembra da Dolfa?


(Uma Dolfa que não reconheço na memória/autoria desconhecida)

De carapinha querendo grisalhar, vinha a pé de Estrela, com sua trouxinha empoeirada sobre o ombro. Atravessava  a ponte seca, se desdobrava pelos muros cheios de limo da rua Bento Rosa e prosseguia a compasso pela várzea dos circos e parques na Borges de Medeiros. Em frente a nossa casa, uma paradinha para descanso e rogos. Quando se refazia do longo rumo, engolia uns versos, mirando as lonjuras entre os olhos amarelados:

“E a fonte a cantar
Chuá, chuá
E as águas a correr
Chuê, chuê
Parece que alguém
Que cheio de mágua
Deixasse quem há de dizer
A saudade
No meio das águas
Rolando também.”


Dolfa sempre pedia um copo d’água. Bebia devagarzinho e bebia tudo, depois agradecida contava que vinha “antis di ontens lá de outros municips”. Às vezes, conforme suas variações na cabeça, erguia a barra do vestido e mostrava, para nosso espanto envergonhado, as fendas desnudas.  Em seguida partia arrastando as chinelas feito uma bocó cochichando “bobagens profundas” aos postes de Lajeado. Não pense que é preconceito:  “Bocó” - assegura o poeta Manoel de Barros – “é um que sabe construir o seu ninho com pouco cisco, é o que gosta de vestir roupa rasgada nas idéias, é o que sempre tem um dom de traste atravessado nele.”  Pois então, essa era a Dolfa que, na brabeza, jogava pedra e se botava a correr atrás da molecada.
 E ainda tem o Tafú, a Sagrada Família, a Mudinha e o Aldino, que ao encontrar meu pai, gostava de saber se ele ainda fumava:
(arquivo Sebaldo Hammes)

“Sim, ainda fumo” – respondia o pai. 
“Então me dá um cigarro?” – pedia Aldino. 

E cigarro se dava porque era um tempo quando essas coisas se fazia por bem, não se fazia por mal.

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