1967. Depois do tufão, uma enchente no potreiro do canal.
*
O vale deixou de ser lajeado pra ser aguado. Na foto antiga, a prova que sempre
vivi a enchente. Fui sua cria. Agora, a destruição muito mais violenta. As águas cresceram, são adultas. Ou, os olhos da infância não percebiam a tristeza e o desespero. Diz o escritor Eduardo Galeano que a memória guardará o que valer a pena. Que a memória
sabe de mim mais do que eu e que a memória não perde o que merece ser salvo. Vidas, quase 50 e outros tantos, desaparecidos. Porque bens um dia se repõem: a rodoviária. A
escola. O hospital. O moinho. O curtume. A olaria. O clube. O banco. A praça. A
farmácia. A casa do seu Durvalino, a
casa da dona Iméria que viram telhados subirem em outros telhados. Escadas que não levam a
lugar algum. Paredes sem quartos. Templos sem Cristo, dessacralizados. Árvores de raízes nuas. Cães desnorteados. Os fios dos postes
como varais de espectros. Novas colinas de solidariedade surgiram: de roupas, calçados,
cobertores, de água, de material de limpeza, de comida. Mas também de escombros
enlameados. Os donativos não param de chegar e tem voluntário que se acha mais voluntário que outro. Pessoas que vagam desnorteadas, e quando o
rio se acomodou no seu leito de vida, as águas dos olhos, de espanto, dor, medo e desesperança.
Você não viu, porque você continuou na sua bolha confortável e quentinha. Você
não mexeu um dedo porque você é bom de vomitar preconceitos e fazer montagens fotográficas. E eu? Eu sei que não adianta soprar em flauta rachada. E não devo perder tempo com
quem não tem leitura. Veja as psicólogas e veterinarias: boas para criar fraudes e exibir em suas redes. E chegaram os políticos para trazer alento e quem
sabe grana, mas recebidos com pedradas online. E eu perdi as estribeiras. E
eles perderam também. E o ódio bateu no portão. E vi uma arma que gritava vaca,
puta, tu vai ter o que merece. E vi o dono do restaurante japonês fugir. Sim, a enchente deixa todo mundo abobado, mesmo. E uns, de espumar de raiva. Muito loucos no terceiro vale mais fértil e triste do mundo.
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