UMA SANTA NO VALE DO TAQUARI
Tela de Angelo Tommasi
Nem todo mundo tem uma tia-avó
que é santa. Santinha de verdade, daquelas
canonizadas pelas próprias mãos do Papa – ela me contou, enquanto ao seu redor uma
babel esclerosada também queria se fazer
ouvir.
- A história é longa...
- Estou aqui para escutar.
Então ela relembrou pedaços de sua história,
fragmentos afetivos protegidos por uma
memória traiçoeira. Mas adoro uma boa pesquisa. Quando vejo, a história
é muito longa mesmo.
JOSÉ GHILARDUCCI
MARCHETTI
O
menino José completou os votos sacerdotais em 1892, no Seminário de
Lucca, na região da Toscana, Itália. Os pais, Ângelo e Carolina, eram pobres
como todo o povo da região. Ambos trabalhavam
no moinho de Lombrici, distante dois quilômetros da pequena Camaiore.
O casal gerou dez filhos, não por
ordem de nascimento: José, Agostinho,
Ângela, Teresa, Pio, Vicente, Elvira, Filomena e Maria Luiza e Maria Assunta.
Épocas difíceis. Antes trabalhar do que estudar. Mas, com apoio do dono do
moinho, Marquês de Mansi, o pequeno José conseguiu estudar e foi encaminhado para o Seminário onde realizou o sonho de se
ver missionário.
Aos 23 anos José foi consagrado pelas mãos do Bispo de Piacenza, João Batista
Scalabrini, fundador da Ordem de São
Carlos.
Logo em seguida, padre José
viajou como capelão da Congregação dos Missionários de São Carlos, em um navio
abarrotado de imigrantes italianos, refugiados do desemprego, da miséria, da desesperança. Nessas travessias marítimas ouvia confissão,
realizava cerimônias de casamento e fúnebres, já que centenas morriam
em alto mar. Vale lembrar que mais
de sete milhões imigrantes italianos desembarcaram
no Brasil entre 1860 e 1920.
Em uma dessas jornadas morreu a
mãe de um bebê. O marido desesperado ameaçava atirar-se também ao mar com a
criança. Para acalmar o pai, o padre José se comprometeu em assumir a criança. Assim que desembarcou no
Rio de Janeiro, com o bebê nos braços,
bateu de porta em porta, até
conseguir deixar o menino junto a um
porteiro de uma casa religiosa. Abrigo provisório, a quem prometeu voltar para
buscá-lo.
A partir daí padre José entendeu sua missão: cuidar dos órfãos
que sobreviviam à travessia, e não exercer atividades de mero capelão de
conselhos e exéquias.
Em sua segunda viagem transatlântica,
o padre José não mais voltou a Paróquia de Compignano, na Perugia, mas fundou em São Paulo um orfanato no alto do bairro Ipiranga, em terreno doado
pelo conde José Vicente de Azevedo, assim como doado também material para a
obra. E em 15 de fevereiro de 1895 é colocada a primeira pedra do orfanato
Cristóvão Colombo e, logo em seguida, o
padre José deu início às obras de um segundo edifício, dessa vez na Vila Prudente, para abrigar meninas. Esse
edificado em um terreno doado pela
senhora Maria do Carmo Cypariza Rodrigues e pelos irmãos Falchi. Os dois orfanatos exclusivamente para receber filhos órfãos
dos imigrantes italianos e africanos que viviam no país, a grande maioria
trabalhando em cafezais.
Precisando de ajuda para tocar os
orfanatos, p. José volta para casa na Itália, em 1887. Entusiasmado e alegre com sua missão conta tudo o que realizou à sua família: “Só que eu estou sozinho. Preciso de Irmãs
para cuidar dos doentes e dos órfãos. Por isso vim pedir a Dom Scalabrini que
envie para São Paulo um grupo de Irmãs dedicadas para realizar essa função, tão
necessária e importante”.
Para a própria irmã, Maria
Assunta, que ensaiava seus votos religiosos e de confinamento na Ordem das Carmelitas,
disse:
“Lá no Brasil estou sozinho com muitos
órfãos. Olhe para o Coração de Jesus, escute seus apelos e depois me responda.”
Maria Assunta conta:
”Sem saber o que fazer,
coloquei-me diante da imagem do Coração de Jesus e, em profundo silêncio,
permaneci um tempo em oração. Nesta oração, recebi a confirmação da vontade de
Deus e aceitei o desafio. Eu disse “Sim” com todo o coração, mesmo sabendo que era
para toda a vida.”
A
missão apostólica, mais tarde denominada Missionárias de São Carlos, iniciou no
dia 27 de outubro de 1895 quando o navio “Fortunata Raggio” zarpou de Gênova,
com a costumeira carrega de imigrantes e de misérias. Antes de desembarcar no
Brasil, 83 filhos de italianos foram
catequizados pacientemente, dia a dia, durante a longa viagem. No navio
receberam a 1ª Comunhão das mãos do Pe. José. Desembarcaram em Santos, depois de 25 dias de viagem. O
padre e as Irmãs chegaram a São Paulo à
noite, no dia 20 de novembro. Os primeiros vinte órfãos esperavam com ansiedade
a chegada de quem vinha para cumprir o papel de mãe.
Mas, Padre
José Marchetti viveu apenas mais cinco
anos na capital paulista. Contraiu febre tifoide, muito comum entre os
imigrantes naquele período. Tinha 27 anos quando morreu deixando cerca de 180 crianças para cuidar no
orfanato.
A IRMÃ
Maria Assunta Ghilarducci Marchetti nasceu em Lombrici di Camaiore, província de Lucca, em
15 de agosto de 1871. Completara 24 anos quando aceitou o convite do seu irmão
padre José para atender as crianças
do orfanato.
Em 25 de outubro de 1895, na
cidade de Piacenza, Maria Assunta tornou-se
a primeira missionária do ramo feminino dos Missionários de São Carlos.
Ela e mais duas companheiras, Angela
Larini e Maria Franceschini, fizeram os votos religiosos pelas mãos do próprio
Dom João Batista Scalabrini que fundou a Congregação das Irmãs
Missionárias de São Carlos Borromeo-Scalabrinianas. As três passaram a se
chamar “Servas dos Órfãos e Abandonados”, mais tarde, “ Irmã Missionária de São
Carlos”.
Irmã Maria
Assunta e as companheiras fizeram votos de pobreza, castidade e obediência.
Receberam os crucifixos, símbolo da missionariedade . De trem rumo ao porto de
Gênova e de lá embarcadas no navio Fortunata
Raggio para o Brasil. Dois anos antes, o pai Angelo havia morrido devido a uma
tuberculose. Assim a mãe acompanhou a
filha na viagem que durou vinte dias até chegar ao Rio de Janeiro. Durante a
travessia tiveram contato com a dura realidade da imigração.
Mas antes
de partir, Dom Scalabrini encorajou as jovens: “Ide confiantes, filhas.
Mandar-vos-ei depois outras Irmãs e vós retornareis para formar-vos e
consolidar-vos no espírito religioso”. Assim nasceu a Congregação fundada por
Dom João Batista Scalabrini.
Na
verdade, Maria Assunta preferia ingressar nas Carmelitas e se afastar da vida
mundana, vivendo contemplativamente. Aconteceu o contrário e ela chegou para
trabalhar ativamente em São Paulo.
Os
orfanatos fundados pelo irmão tinham
como objetivo estabelecer um ambiente familiar para os pequenos que haviam
perdido os pais no trajeto da imigração e no trabalho nas fazendas de café.
Em 1912 é nomeado Superior Geral
da Congregação e passada tantas turbulências, escolhe três
palavras-chave como guia de vida: União, Obediência e Caridade.
Madre Assunta
se dedicou ao próximo com heroísmo e não mediu esforços para atender os mais
necessitados. De bondade extraordinária, piedosa, rezava continuamente e
repetia sempre aos que lhe falavam “se Deus quer, que assim seja.” Quem a conheceu e conviveu com ela expressa a estima e admiração pelo exemplo e
heroicidade das virtudes como humilde, paciência e afetuosa, sem preconceitos.
“Nunca percebi hipocrisia, vanglória,
ingratidão, busca de prestígio nas atitudes de Madre Assunta. Atribuía todo o
bem realizado somente à bondade divina.”- contou uma irmã.
“Madre
Assunta tinha uma vida espiritual muito profunda e as curas que realizava não
eram resultado de curas médicas, mas de suas orações e de sua participação à
Vida Divina. Era muito devota de Nossa Senhora e gostava de difundir esta
devoção. Ensinava rezar o rosário e a contemplar os mistérios. Ensinava também
a doutrina cristã. Todos diziam que a irmã Assunta tinha o dom de curar as
doenças. Sua oração operava coisas admiráveis.”
A CONGREGAÇÃO NO VALE DO TAQUARI
A
própria Irmã Assunta é quem conta:
“Em
1915, fomos mais audaciosas, estabelecendo-nos com nossa primeira missão em Bento
Gonçalves, no Rio Grande do Sul, região de colonização italiana.
No dia
11 de março de 1919 fui enviada para Nova Bréscia, onde fundamos uma nova
escola, Colégio Sagrado Coração de Jesus.
Era um
lugar de difícil acesso, com apenas 60 famílias, um lugar retirado, onde
ninguém queria ir. Mas eu respondi ao pedido do pároco local, Pe. Giovani Morelli, que nos convidara. Disse- lhe: “Nosso
lema é fazer a vontade de Deus.” E fui acompanhada por duas Irmãs: Ir. Atília
Angeli e Ir. Justina de Camargo.
Nesta
nova missão, em Nova Bréscia, organizamos o ensino, a catequese, visitas às
famílias, teatro na escola, muito integradas com aquela comunidade de
imigrantes. Não havia médico. Tive que tratar muitas pessoas com problemas de
saúde, ferimentos, infecções, casos de urgência; também assisti muitos partos.
Alguns dos casos eram até muito graves. A senhora Paula Macagnam ia sempre
comigo, foi minha companheira inseparável. Irmã missionária scalabriniana de
coração materno.”
“Em
Nova Bréscia, Madre Assunta praticou acima de tudo a virtude da paciência, da
caridade e viveu de modo especial, unida a Deus. Doou-se sem reservas,
sobretudo em relação aos doentes, aos pobres, às crianças, e ainda hoje é
recordada pela sua caridade. Na cidade, até hoje continua sendo lembrada e
venerada: em 2007, a Rua 15 de Novembro passou a ser denominada Rua Madre
Assunta Marchetti, uma lembrança em honra à Serva de Deus que doou muito de si
àquele lugar.”
Madre Assunta cita outras
instituições que ajudou a implantar no Vale do Taquari, como o Colégio Santa
Teresinha, em Anta Gorda,
o Colégio São José e Hospital São Camilo, em Roca
Sales e o Colégio Pio X, em Muçum.
Em 1947 Madre Assunta é
internada no hospital Umberto I para o tratamento de erisipela e varizes
nas pernas.
A
religiosa viveu no Brasil por mais de cinquenta anos. Passou os últimos meses
de sua vida em uma cadeira de rodas,
sempre atenta em servir o próximo. Faleceu em 1º de julho de 1948, no
orfanato na Vila Prudente , às 15h15min, assistida por dois sacerdotes, entre
seus familiares e suas órfãs e sob os cuidados de suas Irmãs da Congregação. Hoje
o orfanato chama-se “Casa Madre Assunta Marchetti”.
Clarice
Beraldini, a primeira órfã acolhida pelo Padre Marchetti, também religiosa da
Ordem, por ocasião da morte de Madre Assunta,
diria chorando: “Hoje, nesta casa, morreu a caridade.”
O MILAGRE
Quatro
anos depois de sua morte, no dia 14 de dezembro de 1952 inicia-se em Caxias do
Sul a divulgação de uma “pequena imagem” com a fotografia de Madre Assunta e
uma oração para obter sua beatificação.
Em agosto
de 1970 acontece a exumação dos restos mortais de Madre Assunta e Pe. Marchetti
para conservação em outro túmulo e lugar.
Em
julho de 1991 é feito o translado dos seus restos mortais para um nicho próprio
na capela do Orfanato, em Vila Prudente, São Paulo.
Em
1994, em Porto Alegre, o engenheiro Heráclides
Teixeira Filho foi diagnosticado com morte cerebral, no Hospital Mãe de Deus.
Após a família pedir a intercessão de Madre Assunta, o paciente recobrou os sentidos
e ficou curado sem sequelas vitais e
intelectuais.
Em dezembro de 2011, o Papa
Bento XVI promulgou o decreto que reconhece as virtudes heróicas e confere o
título de Venerável.
Em fevereiro de 2013, aprovação
do aparecimento do milagre teológico atribuído a Madre Assunta, pelo Congresso
dos teólogos para as Causas dos Santos no Vaticano.
No dia 25 de outubro de 2014
aconteceu sua beatificação, em São Paulo.
ONDE
TERMINA A HISTÓRIA DA TIA-AVÓ?
Teresa, irmã de Madre Assunta e padre José
Marchetti, também veio ao Brasil quando
viúva. Trabalhou no Orfanato São Cristóvão onde criou os filhos, sendo que
Angelina casaria com Domingos Zononato. Dessa união, cinco filhos: Atílio, Arnaldo,
Benito, Tosca e Terezinha.
Tosca encontra-se hoje numa casa
geriatrica, em Lajeado. Ela é sobrinha-neta da Beata Madre Assunta. E lembra
que visitava o Orfanato Cristovão Colombo para ver a sua avó e tia-avó. Se eu
não acreditasse nas palavras de Tosca não teria pesquisado. Mas acreditei,
porque essas histórias me fascinam. E elas nem precisam ser tão reais...
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