MEMÓRIA E FUTURO
A maior tirana da minha vida é a memória.
De que adianta pensamentos lúcidos se a gente não tem como guardá-los?
Quando se precisa deles é como procurar a tesoura, os óculos ou uma das meias que se escondeu da outra e que estão perdidos no caos doméstico.
E é por isso estou sempre escrevendo o que penso. E se às vezes não é porque esqueci onde guardei a caneta e o bloquinho.
Todos nós sabemos que não dá para guardar tudo na memória, do contrário ficaríamos loucos. Todas as horas e os minutos de frustrações, raiva misturadas as alegrias e prazeres, tudinho sempre na ponta da língua ou da memória - impossível!
Mas por que, por que meu Sinhô, não consigo gravar o nome das pessoas? Não consigo lembrar de situações que vivi aos 9 ou aos 17 anos? Não consigo nem lembrar de lugares que visitei há dez anos?
É uma traição, é uma vingança, uma humilhação das minhas sinapses? É isso?
“Somos o que nos lembramos” – ou algo assim, sempre tem alguém lembrando o que somos a partir da nossa fome, da nossa leitura e agora do nosso passado.
Então sou uma barata e acho que deveria reler “Metamorfose” do Kafka, só para clarear as idéias. A minha memória também é surreal. Parece que vive de contornos embaciados. “Talvez estive lá.... talvez era eu... talvez conheça ela...” Tudo é talvez e eu sou uma barata tonta às voltas com os vazios existenciais.
A única coisa que a memória ainda não me atraiçoou é quanto ao aroma e ao paladar. O que me torna uma pessoa muito chata para perfumes e temperos.
Viram? Dificilmente levo vantagem.
Então: é a nossa memória que conta as histórias das nossas vidinhas. Cada um com a sua maleta pessoal de recordações. Até podemos dividir lembranças, mas assim como a nossa impressão digital, ela é única de cada um, porque a impressão vivida, mesmo em conjunto, é exclusiva de cada um de nós. É única, pessoal e intransferível – feito senha. A memória é uma aquisição individual. Até o sangue, a pele, o pulmão você divide, mas não a memória. Não existe outra idêntica a sua.
Só que, juntos formamos grupos, comunidades e vamos atrás de objetivos afins: gostamos de pescar, de fazer trilha, de cozinhar, de ler poesia, de jogar carta e apostar. Então aposto que juntos formamos uma cidade e logo criamos uma identidade.
Então, qual a identidade aí em Arroio do Meio? Em Teutônia? Encantado?
Ora, Santa Clara do Sul não pode ser só a terra da Shirley.
Lajeado não pode ser só a terra das oportunidades imobiliárias.
E Cruzeiro do Sul não pode ser só a terra dos Azambujas.
As cidades têm memória, tem uma história a preservar, assim como uma aldeia indígena, uma comunidade quilombola ou uma prainha de pescador. São costumes, tradições e hábitos que dignificam o estofo cultural de geração para geração e formam a memória coletiva, nos orgulhando ou não.
Cuidem-se, afinal é sabido que o coração implora aos nossos bilhões de neurônios que eles se lembrem onde cada um de nós deixou ou escondeu a passividade, o conformismo e a responsabilidade pelas coisas que hoje estão acontecendo nas cidades.
E com cada um de nós.
* Minha crônica nos jornais A Hora do Vale, de Lajeado e Opinião, de Encantado.
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