julho 29, 2011

O FOTÓGRAFO - PARTE DOIS

Voltei a reencontrar Sebaldo. Esperei a missa na Matriz terminar. Perto do confessionário, na saída lateral, chamei:
- Sebaldo!

Ele logo me reconheceu e sorriu erguendo as sobrancelhas:
- A minha amiga...
- Quanto tempo, né?
- Sim, desde 2009...

Pedi desculpas e já me impressionou sua memória. Mais tarde precisei conferir no meu blog a data da primeira entrevista: http://guardachuvadelaura.blogspot.com/2009/07/o-fotografo.html  

Convidei-o para um café na minha casa e ele logo aceitou. Nunca me pareceu tão frágil, tão solitário, pressentem meus espíritos apesar da manhã ensolarada e fria.
E com ele dentro de minha casa pensei o quanto aquilo parecia inusitado para um domingo. 
Fiz um café e servi. Ele espiou o quintal, gostou e veio para a mesa.
Enquanto se servia, ouvíamos nossas próprias dúvidas silenciosas.
Sebaldo sequer perguntou para quê e tampouco se importou com o registro das fotos que eu tirava. Era tudo muito óbvio: ele completa 83 anos em setembro, um dia todos nós morreremos, mas fica a história. Simples assim. Lamentei novamente a falta de uma filmadora.

Sebaldo parece bem de saúde, de memória nem se fala! Apenas um pouco atrapalhado. Como sempre foi.  Procurava a colherzinha do café, que se escondia dentro do vidro de depois que ele mesmo se serviu. Rimos e ele contou um caso de infância que mostrava o quanto era distraído desde pequeno. Fui solidária: e eu que vivo distraída procurando meus óculos? E eles escondidos em cima da cabeça...

- Como é que você chegou em Lajeado, Sebaldo?
- Fui teólogo, não sou padre, você sabe. Já contei. Sou acólito, das antigas Ordens Menores. Posso realizar missas secas para coroinhas. Posso abrir a porta da Igreja, abençoar as frutas, exorcizar demônio, sabe o que é?
- Sei.

- No Seminário de Muzambinho em Minas estudei muito. Lá aprendi latim e grego. Latim estudava quase umas seis horas por ia. Entendo melhor o latim do que a minha própria língua. Sou muito especulativo, sou um pesquisador. Leio muito, mas não essas coisas que não valem nada.
- Lê que tipo de livro?
- A Bíblia é a minha leitura básica.

Sebaldo procura por um garfo na mesa. Quando levanto para buscar um, diz:

- Deixa, não precisa. Comer com as mãos é mais íntimo daquilo que vai tornar mais íntimo ainda.

 Maravilha... A comida íntima das entranhas. Sim, tudo vira merda.

- E depois os dedos são garfos naturais – e sorriu da própria espiritualidade.
- Sim, Jesus não cortou o pão, ele partiu em pedaço.

Essa intervenção do meu “assistente” o surpreendeu e ele gostou.

- É verdade!
- E Muzambinho?
- Nós éramos 12 gaúchos e eu o mais velho. Já tinha uns 31 anos.

Pedi para ele lembrar bem essa questão de datas. Sabe lá se um dia o prof. Schierholt não queira o Sebaldo como verbete.

- Você conta: fui para o Seminário em Taquari com 16 anos, em 1945, quando havia terminado a guerra. Saí com 23 anos e fui para o Seminário Daltro Filho, onde fiz o noviciado e cursei Filosofia. De lá fui para Divinópolis onde fiquei até os 31 anos. Depois, Muzambinho, onde continuei por mais 2 anos no Juvenato Franciscano. Faça as contas!
- 33 anos.
- De lá fui a Três Passos, mais 2 anos.
- 35.

- Voltei para o Seminário de Daltro Filho e trabalhei como Bibliotecário, mais ou menos por 2 anos...
- 37 anos.
- Agora, não lembro... Fui a Santos também... Veja: a memória também tem a função de esquecer... Porque em Minas aprendi a fotografar, pesquisando.  E a revelar também. Alguém me ensinou umas técnicas e eu fui para Santos onde apliquei meus conhecimentos. Tirava fotos e na Pensão Regina onde eu morava, revelava os slides. No outro dia vendia na praça, no porto.
- Mas como?
- Fazia os slides coloridos naqueles monóculos, para olhar contra a luz.
 Lá em Santos eles  pensavam que eu era inglês, italiano, menos gaúcho. Até carioca eles achavam que eu era porque chiava... Se eu tivesse ficado em Santos teria ficado rico, porque eu vendia bem  as fotos, mas voltei.

- E voltou para onde?
- Para o interior de Estrela, Beija-flor, conhece?
- Sim.
- Eu tinha um tio por parte da minha madrasta, o Alfredo Kuhn, o königbienen. (ou algo semelhante...)
- Was?
- Rei das Abelhas. Ele me disse: aqui ta o teu potreiro. Era o meu  quarto. Depois q eles dormiam, eu revelava os slides que tirava durante o dia.
- Então tu foi um fotógrafo autodidata?
- Sim e autônomo.
- E daí veio para Lajeado?

- Vim e morei em Carneiros, na casa do meu avô, pai da madrasta. Morei como alguém da família. E ali conheci uma menininha que era poeta desde pequenininha. A Lurdes Ewald. Lembro q ela teve sarampo, coitadinha. Eles tinham uma varanda em frente da casa e um dia ela me pediu para levantá-la até o alto do telhado: “Mundo”...

- Como?
- Mundo era como ela me chamava. "Mundo, me levanta que eu quero colher as estrelas." Veja só, ela tinha só 2 ou 3 anos e queria pegar as estrelas e colocar na sua cestinha... Era uma verdadeira poeta!

Sebaldo continua seu  café demoradamente. Se maravilha com o que se lembra, se engasga, mistura as lembranças, levanta, quer reproduzir as cenas que lhe chegam do idos. Foram duas horas de conversa que incluiu diferenças entre hetero e homossexuais, circuncisão, lembranças dos freis. Talvez um pouco de confusão mental, mas não maior do que a minha.

OS ESTÚDIOS

- Agora vamos falar só de Lajeado. Quando tu chegaste aqui então já tinhas quase 40 anos?
- Pelos nossos cálculos, sim. Você lembra da Foto Arte, na praça?
- Mais ou menos...
- O dono que não lembro o nome queria que eu  fosse para Porto Alegre fazer fotos coloridas... Sabia que era eu que fazia os slides que passavam antes dos filmes no cine Avenida?
- Não...
- É. Mas vamos... De Carneiros vim morar em cima da rodoviária velha, na Borges de Medeiros. Tinha o estúdio e eu dormia  também. Ali fiz uma cama de taquara. E fechei a janela que dava para o lado do colégio. E para me proteger, para minha segurança, eu deixei o cano da calha solto. Se alguém entrasse por ali, fazia barulho...
- Já era perigoso naquele tempo?
- É... Eu também não gostava quando a polícia entrava ali para ser fotografada. Não gostava de ver as armas. Ali nesse lugar eu fiz uma instalação de luz que me ajudava muito com os clientes. Fiz uma placa que quando eles tocavam a campainha aparecia o escrito “pode subir” ou “ausente”. Aí o cliente sabia que eu podia atender ou não.
Às vezes aparecia alguém para me trazer um prato de comida. Se era mulher as pessoas logo inventavam q era namorada, veja só como eles eram! Apareciam também aqueles q queriam me converter para outras religiões. Mas eu sempre fui católico. Em frente a rodoviária morava uma família muito boa, que ficou minha amiga: Orlando Felix Colombo, hoje falecido.

- E o estúdio?
- Sim... Arrumei um fogãozinho e ali cozinhava  também... A gente tinha que se humilhar... Era viver franciscanamente...


- O senhor não estudou com  frei Vítor?

- Sim quando o frei Vítor fazia sermão até o zinco na igreja tremia.  Veja só... Foi o frei Vítor que... Ele disse um dia q eu tinha uma namorada só porque me viu andando dna roda-gigante com uma moça que era amiga. Aquilo se espalhou.... Um dia me chamaram para tirar fotos numa festa em Forqueta. Eu peguei a bicicleta e fui. Era de noite. Quando cheguei, em cima de um barranco haviam umas pessoas. E ali no escuro elas começaram a joga pedras em mim. Por causa daquela fofoca e porque achavam que eu tinha  fugido do seminário...  Precisei fugir era dali. Sofri moralmente.

Sem muita confiança na memória vislumbrei um Sebaldo vestindo um palito, de bicicleta  por Lajeado. Com suas calças curtas até os tornozelos, marrecão, como se dizia. Os cabelos lambidos, vaselinados, mais compridos na nuca, mais rarefeitos em cima, quase calvo. Sebaldo exalava um cheiro de guardado, quase químico, avinagrado. Roupas simples, um cara deslocado nos anos 70, 80, 90...

- E depois do estúdio na Borges?
- Fui morar ao lado do Caixeiral, na casa de Henrique Schann, um grande amigo. Alugou barato, pq a casa era carcomida de cupim, quase nem tinha mais assoalho.
- Muito amigo...
- Ali fique um bom tempo. Tinha uns pés de manga. As melhores mangas do estado. Mas foram tempos difíceis... Quando participei de uma procissão em Santa Cruz, desmaiei.
- ?
- De fome.

HUMILHAÇÃO

- No tempo do p. Érico eu era o recolhedor do dinheiro que era pago para construir arquibancadas do Paroquial.... Tinha uma campanha de cadeira no céu... Um dia o seu T. presidente da comunidade, disse que estava faltando dinheiro e me chamou na Canônica para uma reunião. Nessa reunião fui acusado de ter roubado o dinheiro. Eu disse que não, mas eles não me deixaram sair da sala enquanto eu não assinasse um papel concordando que eu tinha roubado. Aquilo foi uma das maiores mentiras.
- E tu assinou?
- Fiquei muito tempo lá dentro, sem comer, sem poder sair. Por fim, assinei. Mas escrevi que eu era responsável pelo dinheiro que havia desaparecido, mas que eu não tinha roubado. Fui caluniado, sofri, sofri até derramar sangue. Hoje rezo por eles.
- Alguém  mais sabe disso, Sebaldo?
- Sim, numa reunião no Salão eu contei abertamente na frente de umas 200 pessoas.

Ficamos por uns instantes em silêncio. Sebaldo se serviu de bolo.



- Por falar em roubo... Muita gente roubava as fotos, não é?

- Sim... Eu fazia de conta que não via. Eu é que tinha vergonha...
- Fora aqueles que não pagavam...
- É, mas esses eu já sabia. Então fazia fotos que não duravam nem 8 dias. As imagens sumiam. Aí eles voltavam e diziam que as imagens tinham sumido. Aí eu perguntava “E a senhora pagou?”

Rimos. Era uma boa tática.

- Até hoje tenho muitos filmes e muitas fotos guardadas. Todas tem etiqueta onde diz assunto, localização, data, nome. Por isso às vezes eu levava as fotos até o local onde a 
pessoa morava, para entregar e cobrar.

- Como tu a arte da fotografia, Sebaldo?
- A foto é social. É tudo que acontece no momento na sociedade. Eu estive presente  nos carnavais, nos momentos políticos... Eu tenho uma foto do governador Ildo Meneghetti...
O fotógrafo é como um psicólogo. Quando eu olho no visor eu enxergo as reações de quem está na minha frente e preciso capturar o momento certo. Eu ficava realizado quando alguém buscava a foto e me dizia “Esse sou realmente eu.” 
- O que faltou fotografar?
- Ainda quero registrar o rosto de Cristo no meu cliente, porque todos somos à semelhança de Cristo.
- Mas por que tu parastes de fotografar?
- Parei há 10 anos quando me roubaram a câmera.
- Foi assaltado?
- Não. Mandei consertar em Porto Alegre o nível dela, mas o lojista vendeu o flash e disse que eu não tinha levado a câmera coisa nenhuma. Eu não achei a nota e não pude provar e nunca mais consegui recuperar. A loja fica em frente a Igreja do Rosário, na Vigário Jose Inácio...
Veja só: em Porto Alegre mandei fazer uma maquina especial para fotografar o olho humano. Porque entendo de iridologia. Antes eu achava que o olho era só para olhar para fora, mas agora eu sei que serve para enxergarmos por dentro. Tudo está registrado na retina, tudo que acontece dentro de ti está lá no globo ocular.

- O que falta ainda nessa vida, Sebaldo?
- Eu ainda quero escrever um livro. Eu também estudei Psicologia no Seminário e tenho um caderno onde escrevi tudo que consegui captar das minhas aulas em Daltro Filho. Mas eu preciso de uma lente potente, de aumento, daquelas que se enxerga os poros das mãos.
- Mas por que?
- Porque escrevi tudo na escrita estenográfica... Faltam 8 páginas para terminar o caderno. Acho que dá um livro.
- Como tu queres ser lembrado um dia, Sebaldo?
- Eu me sinto fotógrafo. Dominava essa arte. Nunca me intoxiquei com os produtos químicos, sempre usava luvas, pinças. Tenho muitas coisas no meu apartamento, de outras já me desfiz. Todos nós estamos neste mundo sofrendo e sendo humilhado como Jesus foi. Ele assumiu nossas culpas. Esses dias,  vi um homem gritando na rua: “deus não me dá nada. O diabo me dá!” A gente compreende... Mas sempre é possível voltar para Deus. Alguém lá em cima vê tudo.

Fui buscar uma máquina digital. Expliquei que não era preciso olhar no visor pequeno. Só na imagem grande. Sem óculos ele capturou o que viu a sua frente. E éramos nós, realmente. A nossa essência. E esses somos mesmo nós. Borrões do que fomos.






Sebaldo... Esse é teu nome mesmo?
- É Sebald. Um dia acrescentei o “O” e escrevi Sebaldo. E eles deixaram.
 Mas sou José Sebald, filho de Izidoro Hammes e Ana Maria Spagniol.







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