abril 09, 2019

EDUARDO GALEANO

Os Despejados de Candido Portinari, 1934

As pulgas sonham com comprar um cão,
e os ninguéns com deixar a pobreza,
que em algum dia mágico a sorte chova de repente,
que chova a boa sorte a cântaros;

mas a boa sorte não chove ontem, 
nem hoje, nem amanhã,nem nunca, 
nem uma chuvinha cai do céu da boa sorte,
por mais que os ninguéns a chamem
e mesmo que a mão esquerda coce,
ou se levantem com o pé direito,
ou comecem o ano mudando de vassoura.

Os ninguéns: 
os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: 
os nenhuns, correndo soltos,
morrendo a vida, fodidos e mal pagos:

Que não são, embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.

Os ninguéns, 
que custam menos do que a bala que os mata.


* Lembrei desse texto, d' O livro dos abraços, quando soube do assassinato do musico Evaldo dos Santos Rosa, pelo Exercito Brasileiro.

Somos ninguéns. Mas uns são mais do que outros porque são negros, são da periferia, ou porque são índios, são pobres, ou porque sem-tetos, sem honra, sem carteira de identidade...

Os ninguéns são fuzilados. Cuide-se.

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